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Passagem (Capítulo II)

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Passagem (Capítulo II) Empty Passagem (Capítulo II)

Mensagem por Moggo Dom Ago 12, 2012 1:56 am

Uma história que comecei a escrever há algum tempo atrás e tinha publicada no fórum Voldemort antes de ele ir ao ar. Estive a dar uns retoques nas partes que já tinha escritas, e visto que este lugar tem andado com pouco movimento...aqui vai. Mas antes, alguns avisos:

#1 - Isto é um daqueles projectos em que só trabalho quando calha, pelo que podem contar com grandes, enormes, pausas entre as publicações de capítulos. Em contrapartida, os meus capítulos tendem a ser monstros, por isso espero que a coisa fique mais ou menos equilibrada.
#2 - Isto tem montes e montes e montes de personagens e pontos de vista diferentes. Se acham isso chato, ou frustrante, ou desagradável, confiem em mim quando digo ser melhor que passem esta história à frente. Porque são mesmo imensas.
#3 - Isto é mais um exercício em worldbuilding/construção de sistemas de magia do que outra coisa qualquer. Não quero com isto dizer que não tem um enredo, porque tem, mas mantenham em mente que ele se irá desenvolver com alguma lentidão.
#4 - Isto contém linguagem forte e material que poderá ser considerado perturbador em certas partes. Considerem-se prevenidos.

Apanharam tudo? Vamos então ao prólogo!

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Prólogo
O nome do homem debruçado sobre a escrivaninha era Serge. Serge tinha a honra de ser o senhor e soberano de Corsize, a maior e mais nobre das facções do Continente. Um título que ele sabia não ir manter por muito mais tempo. No exterior da divisão travava-se uma guerra, uma da qual ironicamente havia sido ele o instigador. Porém, o clamor de espada contra armadura e maça contra carne era fácil de ignorar. Mais difícil de banir da sua mente era o ruído dos passos que se aproximavam pelo corredor. Impossível de ignorar era aquilo que com eles vinha. Ele não culpava as suas mãos por se encontrarem mais trementes que o habitual, nem os seus joelhos por estarem prestes a ceder. Mas ele não perdoou a sua voz quando bateram à porta e esta respondeu “Entre”, num crocitar quebrado que mal reconheceu como tendo saído dos seus lábios.

- Merda de briga lá fora - cuspiu a figura que acabava de cambalear para dentro, endireitando-se e erguendo o visor do seu elmo. Serge poderia ter chorado de alívio ao reconhecê-lo. Pela armadura ele não o conseguira, pois esta encontrava-se demasiado denteada e banhada em sangue para se poder identificar a sua insígnia, mas os olhos verdes que o estavam a fuzilar eram inconfundíveis. Ele via-os diariamente quando se olhava ao espelho. - Fazes ideia de onde se meteu a Serisa?

Típico do seu irmão. A cidade capital caía, e a prioridade dele era uma mulher. Mas se nada mais, pelo menos desta vez tratava-se da sua própria em vez de uma qualquer filha de lavradores. E a mulher em questão carregava o seu herdeiro, o que fazia da preocupação de Kale talvez não menos irritante, mas ligeiramente mais justificada. Serge soltou um suspiro de mártir.

- Suponho que se terá retirado para a torre sul com o resto das esposas dos nobres. Não é com ela que te deves preocupar de momento, de qualquer das formas. Kale. Algum sinal dele até agora?

- Como se eu soubesse reconhecer um sinal se o visse. Pareço-te um mágico ou oráculo, ou lá um dos da tua raça? - fungou Kale, num tom que soaria ofensivo se Serge não tivesse sido habituado a ele desde o berço. - Mandaste-me assegurar que o teu fedelho ficava seguro, e foi o que fiz. Sei lá de sinais e de prenúncios. Caso tenhas falhado em dar por isso, há coisas mais importantes a…

Passos. Mais passos no corredor, e eles ressoavam com a inevitabilidade do destino.

- É ele - disse Serge, cada partícula da sua mente gritando-lhe que desta feita acertara e gritando-o com crescente histeria. Ele deu um encontrão ao seu irmão imbecil, procurando obrigá-lo a mover-se, mas Kale parecia ter sido pregado ao chão. - Mexe-te. Sai! Isto não é da tua responsabilidade.

- Aí é que te enganas - replicou o outro, com algo que podia ser mágoa. Não lhe foi dada hipótese de inquirir a que se referia ele, pois outra ocorrência desviou-lhe a atenção.

A porta foi arrancada dos gonzos, voando para dentro da divisão e falhando-os a ambos por pouco. A ocupar a ombreira estava agora um homem, baixo e nédio e de cabelo castanho-claro, cortado rente à cabeça como era usual nas facções do leste. A encimá-lo havia um chapéu que partilhava semelhanças mais que casuais com uma abóbora apodrecida. O recém-chegado retirou-o ao notar que o dito estava a ser alvo de exame e, como se tivesse de repente recordado os seus modos, colocou-o sobre o peito e curvou-se numa vénia que tinha mais de trocista que de servil.

- Netos meus! - exclamou ele, com um sorriso que tinha tanto de jovial como tinha de ameaçador. Se Serge se encontrara nervoso antes, aquele cumprimento fez a sua coluna vertebral querer fugir-lhe através da base do pescoço. Por algum motivo, a presença do outro não estava a afectar o seu irmão de modo igualmente intenso. Kale apenas deixou descair a cabeça e recuou um passo. - Eu sei que não contavam com outra visita, não para já, mas notícias preocupantes chegaram-me aos ouvidos. Notícias que concernem um de vós em particular. Serge! Que história é essa da guerra?

Tendo em conta que o homem que de facto era seu avô, embora com dúzias de gerações de separação, tinha forçosamente de ter passado pela guerra para chegar ali, Serge assumiu que este estava a ser sarcástico. Kale continuava silencioso, o que era invulgar. Devia ter-lhe ocorrido que dada a situação, não era no melhor dos seus interesses chamar a atenção para si. Querendo dizer que era escusado esperar que ele fornecesse uma diversão oportuna. Constatá-lo arrancou um suspiro ao soberano-a-deixar-de-o-ser. Aquilo era típico do seu irmão, também. Kale tendia a escolher as piores ocasiões para revelar algo remotamente parecido com inteligência.

Inspirando com força, Serge encarou o seu oponente.

- Corsize está a crescer em população e a diminuir em recursos disponíveis. Face a esse cenário, a busca por mais verdes prados para ceifar era inevitável. Rogamos-lhe assim que olhe o nosso…

- Tangas - retorquiu o seu avô. Os olhos deste, que até então haviam sido de cor nenhuma na qual Serge tivesse reparado, acabavam de obscurecer, as suas íris de dilatar até lhe engolirem as suas pupilas e o branco em redor. Ele andou para dentro da divisão, espalmando o chapéu de novo na sua cabeça enquanto ia nisso, deitou um olhar de viés a ambos eles e encostou-se à escrivaninha. Serge queria dar um passo atrás, mas uma força que ele não era capaz de entender, quanto mais combater, manteve-o imobilizado quando o seu avô se inclinou para ele e inalou. - Eu sou capaz de o cheirar em ti, jovenzinho. Poder, poder e poder, e quão ardentemente o desejas. A convicção de que te estás a rebelar contra o sistema a que o resto do nosso povo se encontra sujeito, quando a verdade é que apenas estás a acrescentar um indivíduo à fatia dele que consiste em doidos com delírios de grandeza e mais ambição que juízo. E eu não aprovo, e irei fazê-lo parar. De imediato.

- Eu agi dentro das regras! Nenhum humano morto pela minha mão, nenhuma influência do poder com que nasci nas minhas estratégias e vitórias. Qualquer um poderia ter feito o que fiz, Kale podia ter feito o que fiz. Nenhum termo do acordo que Etore me propôs foi intencionalmente quebrado.

O soco veio e arrancou-lhe o ar dos pulmões, tão depressa que ele mal o registou.

- Ouve me lá, meu mafarrico - bradou o outro, e a sua figura diminuta pareceu crescer à frente dos olhos de Serge. Este demorou uma quantidade de tempo ridiculamente longa a perceber que assim parecia porque o homem de facto acabava de aumentar em tamanho. - Tu dizes que eu sou o quê? Que sou um traidor reles e imundo, a quem nada excita mais que uma oportunidade para dispensar a sua marca registada de bom e moral? - Serge sacudiu a cabeça, freneticamente. - Então não irás insinuar que um acordo feito entre ti e Etore de Klei é um acordo que eu tenho o dever de respeitar. Estamos esclarecidos nesse ponto? Óptimo! Porque não tenho a noite inteira, e há toda uma lista de itens que nós dois precisámos de tratar juntos. E tu aí! Pal, Gal, ou o que quer que seja!

- Kale - balbuciou Kale, pouco ou nada agradado por a sua insignificância ter sido suspensa.

- Ou isso. Desanda, contigo já conversei o que tinha a conversar. - Serge lutou para não deixar que o seu choque transparecesse na sua expressão. Uma procissão de emoções desfilou pela cara do seu irmão, encabeçada por alívio e fechada por embaraço. Uma e outra serviram-lhe de evidência de que as suas suspeitas, suspeitas que até então se recusara a articular mesmo que somente em pensamentos, não haviam sido sem bases. Todavia, ele aguardou pela confirmação antes de agir.

- Lamento - disse Kale, passando por ele sem o olhar. - Tu ou eu, foi a isso que se resumiu.
- Entendo. - E de facto, uma parte dele entendia. O seu irmão era vulnerável na sua mortalidade, e a cobardia dele não era uma novidade ou uma revelação. Mas a voz que lhe gritava tais coisas era fraca em comparação com a que se insurgia face àquela traição. Não sem alguma melancolia, ele recordou as oportunidades que tivera de se desembaraçar de Kale antes de este alcançar a idade adulta. O humano nele dera suficiente valor ao sangue para lhe oferecer metade da facção em vez de uma adaga entre as omoplatas. Era tarde para emendar esse erro, mas não para dispensar a muito merecida retribuição. - Eu também lamento. Pelo teu filho por nascer e pela tua viúva por ser.

O fantasma de uma lâmina brilhou, prateado e vermelho, e gritos gémeos cortaram o ar.


Última edição por Moggo em Qua Out 03, 2012 9:40 pm, editado 9 vez(es)
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Mensagem por Marfire Dom Ago 12, 2012 6:26 pm

Olá! Bem, eu reparei que tinhas colocado este menino aqui e resolvi vir comentar (também porque tenho o teu PDF e já o li, hehehe). Eu acho que já sabes a minha opinião sobre a tua escrita. Acho que é realmente propensa ao detalhe e eu gosto disso! Em relação à história acho que o prólogo é bastante diferente do resto que li. Gostei muito da Rana! Imenso mesmo. Quase tanto como gosto do Homem das Luvas! Congrats :D
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Passagem (Capítulo II) Empty Capítulo I

Mensagem por Moggo Dom Ago 12, 2012 6:35 pm

Capítulo I - Mena

Era noite em Krende, capital da facção de Drava, mais mágica cidade das nove facções e do Continente em nenhum sentido além do literal. Os usurários que na cidade trabalhavam haviam impregnado o ar com os produtos da sua actividade de tal maneira que se tornara um dito popular que quem entrava em Krende saía a lançar bolas de fogo, independentemente de quanto poder tivesse tido no sangue ao entrar. Mena de Mondane desconhecia quanta verdade havia nisso. Há quatro anos ela entrara na cidade, vinda das planícies que faziam fronteira entre as doze facções e as Terras Selvagens, e embora desde então ela se tivesse encontrado constantemente rodeada de mágicos, magos e arquimagos, não houvera incremento na sua capacidade de fazer objectos incendiar e rebentar. Claro que, dada a sua natureza, surpreendente seria se isso tivesse sucedido.

Os olhos da rapariga correram as casas de telhados bicudos, pousando nos números das portas que as candeias postas nas suas soleiras iluminavam. A única habitação em frente da qual não havia uma candeia era aquela que ela procurava. Ela deteve-se, com a mão a centímetros de tocar na porta, para examinar o elaborado pentágono dourado pintado acima da maçaneta. Um qualquer símbolo quintano cujo significado ela desconhecia. Os cinco anos que passara como aprendiza do Convénio de Magia haviam-lhe ensinado muito acerca dos poderes ocultos que em Krende eram parte do dia-a-dia, mas pouco ou nada acerca de simbologia religiosa.

Mena desviou o olhar do pentágono e bateu. Nem um segundo mais tarde, a porta abriu-se para revelar uma mulher. Que ela era uma mágica era óbvio. Mena havia aprendido a reconhecer a aura própria de um usurário de magia à força de com tantos trabalhar, e a desconhecida não se preocupara em mascarar a sua. A sua idade, essa era mais difícil de adivinhar. Rugas finas rodeavam-lhe os olhos, mas não havia traços de branco ou cinza no seu cabelo castanho-escuro.

- Mena do Convénio, certo? Nimarine Sagani. Prazer em conhecer-te. - Mena apertou a mão que lhe foi estendida, perguntando-se onde Sagani ficava situado. Geografia não era mais o seu forte que simbologia. - Lamento ter sido necessário convocar-te tão em cima da hora, mas como tenho a certeza de que os teus superiores te comunicaram, a situação é grave. Podes acompanhar-me?

- Claro. - Sem aguardar mais palavras, Nimarine agarrou-a pelo braço e puxou-a para dentro.

- Espero que não tenhas tido problemas no caminho - disse esta. - As ruas não são seguras, dado o que houve ontem no palácio, e desconheço se foste treinada em magia de batalha…

- Eu não sou uma mágica - retorquiu Mena. Ela entendeu que a afirmação da mulher havia sido um teste no instante em que as palavras lhe saíram a boca. - Passante de sétima geração, aqui.

- Uma confirmação extra nunca é demais - murmurou Nimarine. - Da última vez que pedimos um passante à tua gente, deram-nos um mancebo com o sangue tão cheio de magia que suspeito que uma gota dele teria transformado as esferas em sapos. Olhando-lhe para a aura, dirias que os seus pais tinham sido arquimagos, ou algo. Mas admito que tu pareces limpa o suficiente.

- Eu…creio que sim? - Ela sentiu-se aliviada por o corredor que percorriam ser tão escuro que não era possível ver-se que estava a corar. Pelo menos isso lhe haviam garantido os seus professores, que incessantemente repetiam nunca antes terem encontrado tamanha potência no sangue de um estudante. - Ainda não passei para o Mundo de Cima, não realmente, mas nenhum viajante que utilizou sangue meu como catalisador se perdeu no limbo no caminho para lá. E foram inúmeros.

- Esperemos então que esta noite não seja um caso extraordinário - disse Nimarine. Mena pensou que ela acrescentaria algo mais, mas um som de vozes exaltadas flutuou até elas, interrompendo o que quer que a mulher se preparasse para dizer. Esta passou uma mão pela testa e suspirou.

-…e essa coisa matou a Sarah, lembras-te dela? - Mena demorou um momento a reconhecer a voz como sendo feminina. Esta soava mais como um trovão. - Eu não quero, não vou ser parte nisto!

- Mulher, faz-me um favor! Nós tirámos à sorte, tu perdeste, engole a derrota. Fim de assunto.

- Calem. A. Boca. Os. Dois. – Ni entrou cozinha adentro com Mena colada aos calcanhares. À volta da mesa que a ocupava quase na totalidade estavam reunidas três pessoas. Um homem, uma mulher, e uma criança. Os dois que discutiam calaram-se imediatamente, se devido à presença dela, se por temerem a raiva de Nimarine, Mena não saberia dizer. Esta puxou uma cadeira para si e fez-lhe um gesto para que ela a imitasse. Mena assim fez, murmurando uma saudação da qual o par não fez muito caso, enquanto a mulher fitava os outros dois com olhos cheios de ira. - A agir mais infantilmente que o Deion, numa noite destas? Tenham vergonha!

- Peço desculpa, Ni - disse o homem. A sua pele era escura como os das tribos, mas os seus olhos claros e falar sibilante marcavam-no como sendo natural das ilhas. Damash ou Vaskard, deduziu Mena, que passara dois anos na primeira, a expurgar da sua mente e corpo os últimos resquícios de magia que continham. A maioria dos passantes não era tão extremista. A maioria agarrava-se ao pouco poder que lhes restava e tentava educar-se nas ciências arcanas a par com o treino em viagens interdimensionais. Alguns conseguiam até receber o título de mágico, e um conduito e um livro. Mas eles não seriam nunca tão capazes como poderiam ter sido, caso tivessem deixado atrás aquele pequeno pedaço deles que os acorrentava à mediocridade e impedia de ser excepcionais.

- Tenho a certeza de que sim - disse Ni, lançando um olhar dúbio à outra mulher. - Mena, estes são Frisko de Vaskard e Valerie Trimade. A Val é natural do Mundo de Cima, e será a nossa guia lá.

- Muito prazer - disse Val, tudo no seu tom indicando que se tratava de uma mentira. Ela era uma mágica também, conseguia Mena ver. Uma poderosa, mais poderosa que Nimarine, provavelmente mais que certos membros dos mais altos níveis do Convénio. Os olhos da jovem caíram no bastão posto à frente da mulher, reconhecendo-o como a arma que era. Conduitos de magia tendiam a ser pequenos e mantidos longe de olhos cobiçosos. Val exibia o seu como que num desafio. Mas mais revelador que isso era o olho dourado que se encontrava gravado no cimo dele. Mesmo com o seu limitado conhecimento de simbologia, Mena conseguia reconhecer a insígnia de um arquimago.

O que tendo em conta a declaração de Nimarine, fazia pouco ou nenhum sentido, excepto…

- Filha de emigrantes? - adivinhou ela, sorrindo para quebrar o gelo. Val grunhiu qualquer coisa.

- Bem, obviamente. Magia não é algo em que os de cima são muito proficientes, não é assim? - O olhar negro que Nimarine atirou à outra mulher antes de se virar para ela comunicou à rapariga que a rudeza de Val não tinha sido apreciada. Isso sossegou-a, em certa medida. - A avó materna dela foi a suma arquimaga do Trimadune, mas aqui a nossa Valerie é uma orgulhosa nativa do…

- …olho do cu de Judas, Ni. Por acaso pedi-te que declamasses o meu pedigree e história de vida?

- E este é o meu filho, Deion. - O rapazinho levantou os olhos do tampo da mesa e murmurou algo ininteligível de debaixo do seu ninho de cabelo loiro. Mena ainda estava focada em Val, a encará-la com novo respeito. O Trimadune estava para as Terras Selvagens como o Convénio estava para as nove facções. Como era hábito suceder quando duas organizações partilhavam um objectivo mas defendiam diferentes metodologias, havia fricção em abundância entre ambos, mas o respeito que haviam aprendido a cultivar um pelo outro era tão ou mais profundo. - Val, Deion, Frix, a Mena.

- Bem-vinda, Mena - disse Frix, soando ligeiramente mais caloroso. Os olhos dela desviaram-se do conduito de Val e viajaram para ele, só por um momento. Porém, isso foi suficiente para verem e se arregalarem. O outro ofereceu-lhe um sorriso sem humor. - Sim, eu sou um transformador, apenas para tirar isso do caminho. Não há necessidade de agir como se fosse algo de muito espantoso.

- Eu não estava…- Ela ainda estava. A energia que emanava do homem não era a pequena carga quente e fria que envolvia a maior parte dos mágicos. Esta era um vórtice ardente que absorvia os resquícios de poder perdidos no ar e os reemitia em triplicado. Mena engoliu em seco e obrigou-se a desviar a cara. Frix tinha razão. Não havia necessidade de olhar ou estranhar. Haviam passado seis anos desde que representantes do povo da magia haviam começado a abandonar montanhas e pântanos e começado a misturar-se com os comuns mortais. Contudo, ver um deles continuava a ser desestabilizador. - Peço perdão. Apanhou-me desprevenida, nada mais.

- Que o tenhas conseguido reconhecer já é uma surpresa - comentou Nimarine, que se acabava de sentar e de lhe gesticular que devia imitá-la. - Sétima geração, não foi o que disseste?

- Sétima geração, e nenhum mágico foi produzido pela minha família em quase quinhentos anos.

- E ainda assim, tens dupla visão - murmurou a outra. Mena não era capaz de identificar a emoção no seu tom. Acusação? Desapontamento? Suspeita? - Estranho, para alguém que por sua própria admissão não tem no sangue uma única gota de magia. Seria de se pensar que…

- Ver auras não é um talento necessariamente ligado a poderes mágicos - ripostou a rapariga, mais rigidamente do que o necessário. Os seus professores haviam-lho garantido, e tornado a garanti-lo até que finalmente se permitira a acreditar neles. Ela fora examinada por magos especializados, e até um arquimago. Todos haviam determinado que havia nela tão pouca faísca que certas rochas e ervas daninhas eram melhores candidatas para receber o livro e conduito. - A teoria vigente é que eu sou tão desprovida deles que poderes secundários de passante se começaram a manifestar na sua ausência. Entre eles uma versão da visão dupla.

- O que seria uma excelente explicação - disse Val, franzindo a testa tão intensamente que as suas sobrancelhas se uniram numa só. - Se existisse algo como poderes secundários de passante, isto é. Mas não importa. Tu és o que temos, e terás de servir. Não é como se tivéssemos tempo para te recambiar e requisitar um substituto. Ni, a que horas está previsto os outros regressarem?

- O funeral começa à meia-noite, portanto creio que iremos perdê-los. Pena que não possas ficar e conhecê-los, Mena, mas temos de nos mover depressa. Suponho que te foi explicado quem somos e o que iremos fazer hoje? - Ela sacudiu a cabeça. Haviam-na chamado aos aposentos do mago-mor da sua divisão no início da noite, onde este a informara de que os seus serviços eram precisos e de que teria de partir de imediato. Um pedaço de papel com a morada fora-lhe enfiado na mão, e isso fora isso. Nimarine fitou-a, parecendo pasmada. - Sagrado Destino. O que é que tu sabes?

- Que tencionam fazer um grupo passar para o Mundo de Cima - respondeu ela de pronto. - Tendo em conta que requisitaram uma passante certificada, vou assumir que têm as vossas autorizações em ordem e que estas foram examinadas e validadas pelos meus superiores. É tudo o que preciso de saber, realmente. A não ser que haja algo vital de que devo estar informada?

- Não, não de todo. - Nimarine lançou a Val o que lhe pareceu ser um olhar de censura. A mulher acabava de cobrir o rosto com as mãos e ria-se a bom rir. Resignada, a outra dirigiu-se a ela e Frix, que estava a olhar para o lado e a sacudir a cabeça. - Eu vou buscá-la, e vocês os dois…tratem de a pôr a par. E não discutam até eu voltar, pois acreditem ou não, temos uma reputação a manter.

- Sim, querida, adorada Ni - ecoaram os visados, esboçando idênticos e igualmente falsos sorrisos inocentes. Nimarine atirou-lhes uma olhadela dúbia, sussurrou na direcção de Deion algo que soou muito como “Fica de olho neles!” e recuou para fora da cozinha. Mal ela desapareceu de vista, Val soltou um suspiro laborado e virou a sua cadeira para Mena. - Então. Que sabes tu do ataque?

- Ataque? - A jovem demorou alguns instantes a registar aquilo a que a outra se referia. - O palácio, quer dizer? Sei o que por aí se diz. Acredita-se que foram agentes de alguma facção que ressente a nossa aliança…passada aliança…com Corsize. Mas até capturarem os responsáveis…

Mena deixou a sua voz finar-se. Exor, Senhor de Drava, e vários outros elementos da casa senhorial haviam sido massacrados no dia anterior, algo que embora em retrospectiva fosse de se esperar, chocara a facção inteira. Drava e Corsize tinham uma longa história de alianças mútuas e mistura entre as suas casas senhoriais. Quando a guerra tivera início, ninguém alimentara dúvidas de que Drava apoiaria a sua facção-irmã. Mas depois a guerra havia sido perdida, e Kale morrera e Serge desaparecera. Subitamente, a única coisa que impedia as facções vizinhas de invadir era o facto de mesmo naqueles tempos turbulentos, homens e mulheres sãs ainda hesitarem em atacar um lugar onde a média de mágicos, magos e arquimagos era de seis em dez, e virtualmente todo o resto da população tinha um conhecimento e domínio passável do arcano. Isso havia sido certo.

E agora havia sangue nas paredes do palácio, e todas as certezas tinham-se dissolvido.

- O que por aí se diz está errado - declarou Frix. Val torceu o rosto numa carranca, mas ele não fez caso dela e tornou a virar-se para Mena, que repetia mentalmente o que acabava de ouvir. - O que matou Exor e os seus teve pouco a ver com as suas políticas e decisões enquanto soberano.

- Mais propriamente, o que o matou teve muito a ver com a sua decisão de com quem casar a filha.

- Serisa? - Mena não tinha a certeza de perceber. Casar Serisa ax Exor com Kale de Corsize era político, e era grande parte da razão de Drava ter escolhido aliar-se ao duunvirato composto por ele e Serge. Ela refugiara-se em Krende depois de a guerra terminar, o que considerando aquilo que o destino lhe reservara, acabara por não ser a mais iluminada das decisões. - O que tem ela…

- E o que sabes da dinastia de Corsize? - interrompeu Frix, deixando-a ainda mais confundida. Ela viu-se, de mau grado, obrigada a admitir que os seus conhecimentos eram limitados nessa frente. - Serisa carregava o herdeiro…um dos herdeiros de Corsize quando aqui chegou. O que foi feito do outro é um mistério, mas para entender o que se segue, tens primeiro de compreender o que há no sangue daquela família. Deduzo que não é necessário perguntar o que sabes sobre fragmentados.

Mena anuiu, a sua irritação com as constantes mudanças de tema dissolvendo-se à medida que um arrepio lhe percorria a espinha. Ela ouvira as histórias, ouvira-as nas planícies de Mondane e nas praias de Damash, e estudara as suas versões impressas na Grande Biblioteca do Convénio. Frix tinha razão. Não era necessário perguntar, pois tratava-se de cultura geral. Palavras escutadas numa juventude distante regressaram-lhe à mente sem que ela as tivesse convocado. Havia as pessoas, tinha-lhe dito a sua avó, quando ela era tão pequena como Deion. Havia as pessoas, e acima delas havia os usurários de magia, e acima deles havia as bestas que habitavam as Terras Selvagens, e acima delas havia os transformadores, que eram magia tornada carne. E acima deles havia os fragmentados. Os usurários do gémeo escuro da magia. Os que não podiam morrer.

- Eu sei suficiente sobre eles para saber que aquilo que estão a insinuar é impossível. Eles foram-se do mundo civilizado. O Pacto prende-os em Hoza, de onde só sairão quando as estrelas caírem e o mundo deixar de ser mundo. - Isso era cultura geral, também. Os fragmentados haviam andado sobre o mundo durante milénios, espalhando caos e devastação por onde passavam, até que há cinco séculos um deles se erguera e declarara que a era dos monstros terminara. Etore de Klei. O único deles que nas histórias, assumia o papel de herói em vez de vilão.

Os pensamentos de Mena foram interrompidos pelo regresso de Nimarine.

Na mão da mulher balançava uma cesta coberta com um pano, que esta segurava tão afastada do corpo quanto o comprimento do seu braço lhe permitia. Ela pousou-a sobre a mesa, desviando um canto do tecido de forma a deixar à mostra uma cabeça coberta de cabelo escuro.

- Um bebé? - Ni acenou solenemente.

- Não uma qualquer bebé. Esta criança é a filha de Kale e Seris e…bem, vê por ti mesma. - O resto do pano foi puxado para o lado. Inicialmente, Mena sentiu-se insegura do que era suposto estar a ver. Mas então a bebé abriu os olhos e a questão que ela estivera prestes a colocar morreu-lhe nos lábios. Mena vinha de uma família grande. Antes de ser aceite como aprendiza do Convénio, ela vira tantos bebés que lhes perdera a conta, e todos eles tinham sido rosados e saudáveis, mesmo que a crueldade da natureza lhes tivesse concedido faces cujos traços estariam melhor enquadrados no traseiro de um jumento. E amorosos, eles tinham sido amorosos como alguma lei não escrita ditava que bebés deviam ser. O mesmo não podia ser dito da criança no cesto.

- Esta - disse Val, soando obscenamente satisfeita consigo própria - é a parte do programa em que começas a vomitar variações de “Mas isto é impossível!”, “Como?!” e “Horrores!”, e reavalias tudo o que julgavas saber acerca do mundo em que vives. Tira um momento. Vais precisar dele.

- Mas…- Mena apercebeu-se do que estivera prestes a dizer e trincou a língua. - Fragmentado?

- Foram os olhos que te deram a pista? - Na verdade, ela estivera a tentar não se concentrar tanto nos olhos, mas as palavras de Val fizeram-na deitar-lhes um relance e deparar-se com eles a fitá-la intensamente, com uma inteligência e compreensão mais próprias de adulto que de uma criança. Negros de um lado ao outro, assim eram eles. - E para responder à pergunta que certamente estás a colocar a ti própria, não, não estás a olhar para um dos possuídos. Esta coisa nasceu ontem.

- O nome dela é Gwendolyn - replicou Nimarine, rigidamente. Val deu de olhos e fungou.

- Fragmentados…nascem? - Mena revirou o nome dentro da sua cabeça, testando a sua entoação com crescente apreensão. Gwen-do-lene. A criatura dentro do cesto pestanejou como se a tivesse escutado. Sentindo orgulho por as suas cordas vocais funcionarem apesar de estarem a tremer, Mena prosseguiu. - Isto é…ela é um fragmentado. E ela é a filha de um Senhor de Facção deposto.

- A dinastia dos soberanos de Corsize produz alguns de quando em quando, sim. Ou alguns com o potencial para o virem a ser. Está-lhes no sangue, assim como a aptidão para passar entre mundos está no teu. Ao longo dos séculos a nossa sociedade impediu a activação da maioria deles, mas por desgraça, desta vez a pessoa que encarregámos da tarefa…

-…falhou epicamente! - declarou Val, com um sorriso enviesado. Este cedeu um pouco quando os outros lhe deitaram olhares horrorizados. A mulher cruzou os braços de forma defensiva. - O quê? A Sarah era minha irmã. Se alguém tem direito a dizer as coisas como são, sou eu.

- Não há necessidade de ser tão insensível. Todos aqui gostavam dela, se bem te recordas.
- Sim, Frixy-Frix, claro - disse ela, com doçura de apodrecer dentes. - Tanto como de mim, aposto.

- Isso não tem…- Frix passou uma mão pela testa, respirou fundo e fuzilou a mulher com um olhar de ressentimento que esta ignorou categoricamente, e tornou a virar-se para Mena. - Como estava a dizer até me interromperem de maneira nada além de rude, por vezes a activação deles dá-se de formas…violentas. E tendo em conta as circunstâncias traumáticas na qual esta…

- O que o senhor Politicamente Correcto está a querer dizer é que a Sarah foi estúpida ao ponto de informar a mamã da coisa daquilo que esta estava para parir, e a pobre vaca louca endoideceu de desgosto e atirou-se de uma torre para não ser obrigada a colocar tal infâmia sobre o mundo. Uma péssima de uma ideia, tendo em conta que matar um potencial fragmentado é um modo infalível de assegurar que esse potencial se concretiza. Tu tinhas razão em perguntar se eles nascem, miúda do Convénio, porque eles não costumam. Humanos com potencial que se activam muito brevemente após o seu nascimento, esses houve aos pontapés, mas que nasçam já com o poder activo é algo inaudito. Típico da Sarah, querer criar excepções à regra.

- O que tencionam fazer dela? Não a podem deixar à solta. Deviam afogá-la, queimá-la e…

- Eu disse-lhes precisamente o mesmo - replicou Val. Pela primeira vez, a mulher parecia encará-la com algo próximo de apreciação. Mena não tinha a certeza de como se sentia em relação a isso. – …se bem que as minhas sugestões incluíssem meio quilo de explosivos, uma serra eléctrica e uma picadora. Recusaram, mas vão dar-me razão quando isso crescer e nos matar a todos, ai vão, vão.

- Val, menos! – Nimarine levantou-se, a sua cara cheia de um ar tão feroz que Mena recuou com a cadeira apesar de não ser o alvo da zanga dela. - Eu posso tolerar qualquer barbaridade que digas, mas em frente do meu filho, irás ter tento na língua. Queres marcá-lo para a vida?

Como girassóis envasados em busca de uma janela, quatro cabeças viraram-se para Deion, que tinha os olhos pregados na mesa, sem ligar a nada e sem dar sinais de que marcas indeléveis se encontrassem a ser sofridas. Mena invejou a sua capacidade de abstracção.

- Quanto àquilo que pretendemos fazer com ela - continuou Nimarine, tornando a sentar-se - é aí que tu entras, Mena. O Pacto que prende os fragmentados em Hoza não tem poder sobre aqueles que nasceram após a sua instauração. É uma das suas regras cardinais, essa. Eles não fogem a promessas, mas um não pode prometer por outro, e ela não jurou que lá permaneceria. Podemos atirá-la para lá, mas que garantias temos de que lá permanecerá quando crescer e entender que aquilo que prende os outros não se aplica a ela? Portanto, vamos levá-la para o Mundo de Cima.

- Têm…têm a certeza de que isso é sensato? - perguntou a rapariga, num fio de voz. - Do Mundo de Cima ela pode regressar, também. Não seria preferível obrigá-la a jurar pelos termos do Pacto?

- Tenho curiosidade em saber como arrancarias uma promessa a quem não sabe falar. A Val está encarregue de a vigiar e assegurar que a desgraça de ontem não se repetirá. Isso terá de bastar.

- Eu…bem, a verdade é que todo este assunto não é da minha conta, mas…os meus superiores encontram-se informados disto? - Ela tentou usar um tom diplomático e falhou.

Val emitiu um barulho descrente. Frix ofereceu-lhe um sorriso amarelo. Nimarine suspirou.

- Nós contámos ao Convénio o que o Convénio precisa de saber. Eles sempre foram excelentes no que respeita a não se intrometer nos nossos assuntos, devo dizer - Mena tentou processar isso e avaliar quanta verdade a afirmação continha. Era difícil dizer, mas os seus superiores certamente haviam investigado aquelas pessoas antes de a mandarem até elas, não era assim? Era assim que as coisas funcionavam. - Agora que tens uma melhor ideia daquilo que está em jogo aqui, pergunto se ainda estás disposta trabalhar connosco. Foi-nos garantido que não terias problemas, mas…

- Eu não me recordo de alguma vez ter recusado ajudar. Um trabalho é um trabalho.
- Sim, mas…- Nimarine interrompeu-se, fez uma careta e pressionou um dedo contra a sua testa. - Estou a ver. Eles abstiveram-se de te contar que não se trata de um trabalho mas de um contrato permanente, não é assim? Era de se prever. Frix, se não te importares de lhe explicar…

- Eu? Porquê eu? - A mulher retirou o dedo da testa e apontou-o para Val, que se encontrava já de boca aberta e pronta para falar. Frix pareceu apanhar a deixa e aclarou a garganta. - Certo. Mena? A questão é esta: dada a natureza da nossa missão, é quase um requerimento que tenhamos um passante a trabalhar connosco. Contratar um requer menos esforço que constantemente contactar o Convénio e nunca saber com o que contar, e ter de repetir este discurso uma e outra e outra vez.

- Eu continuo a dizer que devíamos antes ter falado com o teu primo…

- Iv? Ele acabou de se casar, Val. É claro que irá recusar. - Val resmungou algo sobre ter a certeza de que seria capaz de o fazer mudar de opinião. - Voltando ao que importa, a Sarah costumava ser a nossa primeira opção, mas tendo em conta o que aconteceu, precisámos de uma alternativa.

- E eu sou essa alternativa? - Mena estava a tentar não entrar em pânico. - Eu…eu não sei…

- Estás nervosa, o que é natural. - Ela evitou um estremecimento quando Nimarine lhe pousou uma mão no ombro. Tratava-se de um gesto completamente incongruente, e a rapariga não sabia o que pensar dele. - Dá-nos esta noite. Uma passagem, já que foi para isso que vieste preparada. Tudo o resto do que precisas de saber ser-te-á explicado pelo caminho. Quando regressarmos, decidirás se desejas ou não juntar-te a nós, e respeitaremos a tua vontade seja esta qual for.

- Mas realmente, não tens razão para recusar. O pagamento é melhor que a miséria que receberás do Convénio, isto partindo do princípio de que irão querer manter-te depois de te formares, e…que idade tens tu? - Mena murmurou um hesitante “vinte e um”. - Vinte e um. Eu diria que são raras as raparigas de vinte e um que estudam as artes da passagem porque aspiram ser bancos de sangue itinerantes, e podes crer ser isso o que te espera se continuares com eles. Os arquimagos que vos comandam estão pouco interessados em financiar viagens de lazer quando um corte na mão é tão mais simples e económico. Nós, e em especial o nosso patrão…somos mais generosos.

- Val, podias não fazer uma simples oferta de emprego soar como um contrato de venda de alma?

- Frixy, eu sei que isto para ti é difícil, mas podes tentar não ser desmancha-prazeres?
- Val, podes tentar não ser uma bruxa horrenda, para variar?

- Oh, não! Tu não acabaste de usar essa palavra! Retira isso imediatamente, seu…

- Em todo o caso, esta deverá ser uma viagem curta - continuou Nimarine, enquanto Mena olhava dela para Val e mergulhava a mão no bolso do seu casaco. Quase inconscientemente, ela tocou na esfera-de-salto dentro dele. O gesto, tão familiar aos seus dedos como o de respirar era aos seus pulmões, acalmou-a como nada mais o teria feito. Esferas-de-salto eram para passantes o que o livro e o conduito eram para os usurários de magia. Uma ferramenta do ofício, mas tão mais do que isso. - Vamos entregar a criança e notificar o patrão do sucedido, o que infelizmente fará com que não sobre muito tempo para fazer turismo. Em teoria podíamos deixar-te explorar por conta própria, mas sendo esta a tua primeira viagem e considerando que ele decerto quererá falar contigo…

- Ele? - murmurou Mena, sentindo um terror inexplicável trepar-lhe pela espinha acima e alojar-se na base do seu pescoço. Ela ouvira algo, algo como um eco que seguira a palavra, e o silvo irado que veio da direcção de Val indicou-lhe que não fora a única a escutá-lo. Devagar, e sentindo que o que estava prestes a fazer era algo de que se iria arrepender amargamente, a jovem voltou-se. A criatura dentro do cesto fitou-a. Quaisquer dúvidas que ela pudesse ter de que esta se encontrava consciente do que acontecia em seu redor dissiparam-se nesse instante.

- Ele, o patrão - retorquiu Val, com manifesta impaciência. O olhar de viés que esta estava a lançar ao cesto também não passou despercebido a Mena. - Ele costuma querer ver o que contrata.

- Eu continuo indecisa nesse aspecto. O de trabalhar convosco - disse ela. Em teoria, devia tratar-se de algo descomplicado. A vontade de viajar entre mundos era uma que lhe estava no sangue quase tanto como a capacidade de o fazer, mas ela nunca se iludira quanto à frequência com que lhe seria permitido passar, mesmo após terminar a sua aprendizagem. Assim, havia uma parte dela que queria com desespero aceitar um emprego que lhe permitiria fazê-lo com frequência.

Porém, senso comum impedia-a de o fazer. Ela mal conhecia aquela gente.

- Dica de entendida, quer tenciones aceitar ou não: não reajas a ele como reagiste ao Frix. Ele não aprecia lá muito todo o circo de suspiros e ares incrédulos. Oh, e não grites. Sobretudo, não grites.

- Porque haveria de o fazer? Ele também é um transformador? - A gargalhada que Val soltou era fria, embora não tanto como era pavorosa. Mena encarou-a, algo ofendida. - Eu disse algo de mal?

- Oh, não. - O sorriso da outra esticou-se. - Ele irá positivamente, positivamente adorar-te.

Por alguma razão, isso não deixou a rapariga mais descansada.


Hector Klay espreguiçou-se preguiçosamente e deitou um olhar indolente ao ecrã da TV. Na mesinha à sua frente havia um controlo remoto que ele estava demasiado fatigado para alcançar, e na cozinha um prato de massas frias que ele não tinha apetite para comer. O dia não fora o que se chamaria de extenuante, mas o seu cansaço era menos físico que mental. A consciência aguda de que algo se estava a passar ou algo estava por se passar começara a atacá-lo por volta das dez da manhã, e não o abandonara no decorrer da tarde. A sua mulher apercebera-se da sua ansiedade e dissera-lhe para relaxar. Que estava a fazer filmes na sua cabeça, e sem razão nenhuma. Amanda tendia a ter essas e similares reacções, quando ele inadvertidamente deixava escapar algo alusivo ao assunto que ela dava o seu melhor para ignorar desde que haviam casado.

Com um suspiro, Hector obrigou-se a erguer-se do sofá. O relógio na parede informou-o de que passava da meia-noite, significando ser improvável que fosse o que fosse que ele sabia estar para acontecer fosse acontecer antes de se ir deitar. O mais frustrante, pensou para si enquanto se encaminhava na direcção das escadas, era não saber quem o responsável por o que quer que se fosse passar. Conhecer o dono da mão era metade do requerido para saber como esta agiria, mas por desgraça, os seus pressentimentos raramente traziam anexado o nome da sua causa.

- Ainda de pé? - A voz de Amanda chegou-lhe num murmúrio. Ele virou-se para a ver sair, em passos de lã, do quarto de Julian. Alarmes tocaram na sua cabeça.

- Junto-me a ti dentro de um momento - prometeu ele. - Porque é que tu ainda estás de pé?
- Pareceu-me ouvir o bebé chorar - respondeu ela, com um encolher de ombros. - Mas ele está a dormir como um santo, por isso devo tê-lo imaginado. Porquê, há algum problema?

- Não. Nada. Bons sonhos. - Ele percorreu o corredor em passo acelerado, mas a sua esposa não o seguiu. Quando ela não tinha como racionalizar os seus comportamentos bizarros, ignorá-los era a sua táctica habitual. De início isso perturbara-o, mas ele não tardara a decidir que provavelmente era pelo melhor. Amanda podia fantasiar viver numa casa normal com um marido normal e um filho normal, se isso a deixava feliz, e ele devia sentir-se grato por ela se fazer voluntariamente cega a todas as provas do quanto o seu sonho diferia da realidade.

Julian dormia no berço, tal como Amanda dissera, e Hector permitiu-se a soltar um suspiro de alívio. Ele parou por alguns minutos para o observar, e forçou-se a não fazer caso da aurora boreal em miniatura que ondulava à volta dele. Amanda não era capaz de a ver, e ter-se-ia fingido incapaz se o fosse. Mas o seu filho era, e isso preocupava-o. Ainda no dia anterior, Julian viera ter com ele para excitadamente lhe contar acerca das “coes nitas” que o seguiam para onde quer que fosse. Significando que o seu poder estava lentamente a corroer a magia que deveria impedi-lo de se manifestar, uma situação que resultaria em desastre se não fosse remediada. Quando os outros regressassem do Mundo de Baixo ele teria de pedir a Val ou Nimarine para reforçar as protecções.

Hector fechou a porta do quarto, tomando cuidado para não fazer ruído, e foi até à do seu. Um forte odor a erva-de-gatos e almíscar invadiu-lhe as narinas quando a abriu. Ele deteve-se no umbral e enrugou a testa. A sua mente, essa estava a accionar o botão de pânico. Mesmo com as luzes apagadas, era nítido que as sombras da mobília no interior da divisão não correspondiam a uma cama de casal e guarda-roupa, e que a mulher dentro dela não era a sua mulher.

Ou uma mulher de todo.

- Etore - disse a mulher que não era uma mulher, reconhecendo a presença dele com um aceno de cabeça. A sua voz soava como veludo e sexo e brasas incandescentes, ou como estas soariam se possuíssem vozes. Uma luz acendeu-se nas costas dela, iluminando a sua forma. Observando-a de longe, seria possível confundi-la com uma idosa. Observando-a de perto e verificando que o seu rosto era liso e cheio do fulgor da juventude, ela seria vista como uma rapariga atraente de cabelos de neve. Contudo, um observador atento não terminaria aí o seu exame. Um observador atento iria concentrar-se nos olhos dela, e entender que estes não eram o espelho da sua alma por não existir nada para ser espelhado. - Há quanto tempo.

- Um milénio - replicou ele, dando um passo em frente e fechando a porta atrás de si. A mulher que não era uma mulher inclinou a cabeça e franziu a testa como se efectuasse um cálculo complicado.

- Não tanto tempo, então. Erro meu. - O seu rosto normalizou-se, embora descrevê-lo como normal fosse dar-lhe demasiado crédito. - Aborrecimento faz parecer que os anos passam mais devagar.

Hector não fez caso do comentário e puxou de uma até recentemente inexistente cadeira.

- A que devo então a honra desta visita, minha senhora? - Ele nem pestanejou quando uma mesa apareceu a escassos centímetros de onde se encontrava parado, e uma outra cadeira atrás dela.

- Formal e incorrecto, como sempre. Eu não sou uma senhora, Etore, e ambos sabemos isso.

- O que prefere que lhe chame, então? - quis ele saber, enquanto ela se instalava na cadeira atrás de si. O ominoso retorcer de lábios com o qual o brindou tinha somente semelhanças passageiras com um sorriso, mas Hector fez por lho devolver, pensando em Amanda e em Julian e em como ofender a sua interlocutora lhes custaria caro. - Era Hieraxis da última vez, se bem me lembro.

- Era? Eu não saberia dizer. Tantos anos. Tantos nomes. Magda servirá, por enquanto.

- Magda - repetiu ele, em jeito de interrogação e jeito de aquiescência. - Seja. Porque estás aqui?

- Mudaste de corpo - comentou ela, ignorando a questão. - Preferia-o com escamas e espinhos.

- Abandonei esse ainda antes do nosso último encontro. Pela última vez, o que é que queres?

A gargalhada que ela - Magda - soltou encontrava-se apenas uns centos de graus abaixo de zero em matéria de temperatura, o que o levou a concluir que esta tentava colocá-lo à vontade.

- Tão impaciente. Sempre tão impaciente. - As mãos dela correram como aranhas alvoraçadas para o baralho de cartas que se encontrava à sua esquerda, sobre o tampo da mesa. Ela levantou para ele os seus olhos, escuros e profundos como o limbo entre mundos e não menos inexoráveis. Hector recusou-se a enfrentá-los. A sua atenção encontrava-se na carta que os dedos dela, frágeis e delicados em aparência mas imbuídos da implacabilidade do destino, estavam a roçar, capturar, virar. Ele apenas se deu conta de estar a suster o fôlego quando a carta seleccionada foi exibida diante do seu rosto, fazendo-o exalar ao reconhecê-la. Magda virou-a para si e estudou-a. Os seus olhos não traíam emoções que não tivessem sido cuidadosamente engendradas para com emoção se parecerem. - Morte. Mudança, novos rumos. Talvez a mais auspiciosa das cartas.

- Tu disseste estar aborrecida. Tê-la a aparecer não é exactamente uma surpresa.

- Não - concordou ela, tornando a concentrar-se no baralho. Com uma rapidez apenas partilhada por frequentadores habituais de casinos, as suas mãos partiram-no em duas metades, depois em três, depois em seis, todas elas de tamanho idêntico ao do baralho completo, e retiraram uma carta de cima, debaixo e de cima de cada uma. - Eu estou aborrecida. Anos, décadas, séculos passaram desde a última vez que um jogo foi jogado. Eu decidi. Haverá um objectivo. Haverá um fim e início e limite. E haverão seis, seis jogadores. Três dos teus, dois dos meus, um dos de ninguém.

Hector deteve-se nas seis cartas agora postas à sua frente e percorreu-as com os olhos. A maioria delas não seria encontrada num baralho de tarot normal, mas algumas eram facilmente reconhecíveis. Morte, novamente, e que essa carta em particular ainda se encontrasse junto ao cotovelo de Magda, onde esta a pousara, não lhe passou despercebido. Morte, o sol e o louco, e para além delas havia as outras, as que eram exclusivas àquele baralho. Veneno, as serviçais, a espada branca. Quanto mais atentamente ele observava as cartas, mais os desenhos deixavam de se parecer com linhas de tinta preenchidas com laca para passarem a ser o objecto, o conceito que representavam. Seis. Três, dois e um, um, dois e três. Um que facilmente se arranjaria, pois aquele mundo e o outro pululavam de humanos para quem magia era uma ilusão ou algo do qual manter a distância. Dois que tanto poderiam ser mágicos como do povo da magia, embora ele se inclinasse mais para a segunda hipótese, e portanto também não eram incomuns ou difíceis de encontrar.

Mas dos dele, do povo de Hoza, da raça dos fragmentados…

- Três - disse Hector, não se incomodando em disfarçar a tensão na sua voz. - Dificilmente existem mais de dois que não se encontram presos pelo Pacto, partindo do princípio de que não estás aqui para me tentar recrutar. Um deles está demasiadamente atarefado a brincar às guerras para se querer oferecer para ser parte do teu jogo. O outro…- O outro era um tema sensível, algo que seria escusado referir ainda que não fosse certo que ela o soubesse. Mas ele não deixara isso detê-lo há cinco séculos, razão pela qual também não o faria agora. - Eu não tenho ouvido nada sobre ele.

- Mas foram quantos, seis anos desde que aquela explosão fez a sua prisão ruir? Duvido que não tenhas tido notícias sobre o seu paradeiro durante esse tempo. Vocês eram tão bons amigos.

- Ele não tem motivos para me contactar ou recordar da sua existência. Isto poderá ser um choque para ti, mas explodir alguém e prendê-lo numa montanha durante mais de quinhentos anos tende a deteriorar o relacionamento que se tem com a pessoa em causa, por muito amigável que ele tenha começado por ser. - Quinhentos anos. Era desconcertante que os anos estivessem a fazer os seus processos mentais assemelhar-se aos da mulher do outro lado da mesa, mas ele não sentia ter-se passado tanto tempo quanto isso. Fechando os olhos, Hector continuava a ser capaz de evocar memórias da instável era da formação do Pacto, que emergiam tão nítidas que dir-se-ia terem tido lugar no dia anterior. A guerra, as guerras, e as escaramuças e batalhas menores e assassinatos e contendas aleatórias que haviam tornado segregação um imperativo. A dificuldade de controlar um povo com o poder para agir de acordo com os seus mais violentos instintos com total impunidade.

A traição da única pessoa que estivera a seu lado antes e depois de se tornar evidente que medidas mais drásticas precisariam de ser tomadas para impedir o Mundo de Baixo de implodir.

- Talvez este dia ainda te reserve uma surpresa, então - disse Magda, e porque era ela a dizê-lo, Hector não duvidou. Ela recolheu os seis baralhos e tornou a fazer deles um, mas as seis cartas que havia retirado permaneceram sobre a mesa. Seis, um e dois e três. - Mas não. Nem ele nem tu são parte do jogo que irá ser jogado. Eu conheço-vos, a ambos vocês. Os vossos pensamentos e padrões de acção e decisão não têm segredos para mim, deixaram de os ter há anos. Nenhuma inovação ou imprevisto é possível da vossa parte, e o previsível é aborrecido. O rapaz de Corsize é uma opção, ou seria-o, se não fosse minha vontade que este jogo seja novo em todos os sentidos. Três foram já seleccionados. Morte, veneno, espada. Dois…- Hector apanhou um relance de cor-de-laranja e chamas quando ela tirou mais outra carta e recatadamente a virou para si, antes de se dedicar às três que restavam na sua outra mão. - …dois, escolhidos também. O sol, o louco. Um, e a carta correcta irá cair no lugar para a pessoa correcta quando a altura correcta chegar.

- Três - repetiu Hector, sentindo um terrível pressentimento a mordê-lo. - Quem?

- O outro que referiste. O teu velho amigo. Ele teve um filho, e esse filho teve um filho, e do sangue deles germinou uma dinastia. Quis a força que este mundo rege que entre os seus filhos se contem dois nascidos com o poder do seu antepassado. - Morte. Veneno. Duas cartas, uma em falta.

- Quem? Falaste em dois, quem é o terceiro? - Magda não lhe deu resposta, não com palavras. Ela baixou os olhos para a mesa e ao longe, a um mundo de distância, o choro de um bebé quebrou o silêncio que se instalara. Hector levantou-se abruptamente, uma única carta gravada a fogo na sua mente, na completude do seu ser. Mãos fantasmagóricas tentaram mantê-lo na cadeira, mãos que ele sabia serem obra do seu próprio pânico. Magda não estava a tentar impedi-lo de partir. Ela nem se moveu quando ele chegou à porta e se virou para a encarar, a sua face retorcida com ódio que apenas era seguro dirigir-lhe por ela não ser capaz de o interpretar ou entender. - Sai.

- Já? Mas tu não chegaste a perguntar-me. Qual o objectivo. O fim e o limite.

- Vida. Morte - replicou Hector, não se incomodando em impugnar as suas palavras de acidez. Esta seria desperdiçada nela. - Não é a isso que todos os teus jogos, até o Grande Jogo, se resumem?

- Se fosse minha intenção presentear os jogadores com uma delas, eu não teria escolhido imortais.

- Há mais de um modo de aniquilar uma alma. - Porém, ela não entenderia isso, nunca entenderia, significando que era possível existir um grão de verdade na sua afirmação. - No entanto, interessa-me menos o objectivo que o início. Deduzo que em fraldas eles sejam um pobre entretenimento.

- Evidentemente.

- Quanto tempo? - A voz dele era pouco mais que um murmúrio nesse ponto. - Quanto tempo até o meu filho me ser retirado por teu desígnio? Quanto tempo até fazeres dele uma carta no teu jogo?

- Pouco, não muito. Nunca demasiado. - Preso no olho do furacão da sua fúria cega, Hector tentou pensar como Magda pensava. Pouco tempo podia, através dos olhos dela, ser lido como um século ou um milénio, mas dadas as circunstâncias, essa consciência era um pobre conforto.

Havia as pessoas, dizia-se no Mundo de Baixo, onde essas coisas eram sabidas. Havia as pessoas e havia os mágicos que eram nada mais que pessoas com magia, e havia as bestas das Terras Selvagens que haviam sido pessoas antes dos poderes as deformarem. Havia aqueles que respiravam e exsudavam magia e asseguravam a sua contínua formação e regeneração, e havia o povo de Hoza, o seu povo, que era senhor do gémeo sombrio do poder que governava o mundo. E acima deles havia Eles. Magda, Hieraxis, Tandra e Niverlas, a Dama Branca, a Senhora dos Muitos Nomes, cujas palavras eram dogma e cuja vontade era destino. E havia o outro, o Grande Pai, que nos confins de Hoza dormia um sono milenar mas alterava a realidade com a sua mera existência. Pessoas, depois mágicos, depois as bestas, depois os regeneradores, depois os fragmentados, era assim que as gentes organizavam e hierarquizavam em matéria de poder aqueles que andavam sobre o mundo. Contudo, todos eles eram iguais quando Eles eram listados juntamente.

Hector Klay, que numa vida que tentara com desespero descartar tinha sido Etore de Klei, Senhor dos Fragmentados, olhou de frente para a carrasca omnipotente que acabava de condenar o seu filho ao fado ao qual tão ardentemente o tentara poupar. Ele olhou-a, medindo-a, medindo o seu poder e medindo o perigo que ela representava. Medindo o imensurável e interiorizando-o.

- Não posso impedir-te. Mas prometo-te, senhora, que levando-o assinas a tua sentença de morte.

- Uma ameaça vazia que não tens poder para sustentar, quanto mais para cumprir. - Pela segunda vez, Hector recordou-se dos tempos de pouco antes do Pacto. De como mesmo aqueles que mais fé possuíam nas suas capacidades haviam proferido palavras semelhantes. Ele recordou os seus rostos apavorados, a compreensão terrível que se instalara neles quando finalmente se tornara um facto que o tinham subestimado. Um sorriso lento espalhou-se pelo seu rosto e fixou-se nele.

- Veremos - disse ele, e virou-lhe as costas. - Veremos.

Hector fechou a porta atrás de si e deixou-se cair de encontro à madeira. Os seus olhos não vertiam lágrimas há cinco séculos, mas estavam a fazê-lo agora. Ele secou-as, desastradamente, e endireitou-se. A sua mão foi para a maçaneta e rodou-a. Para lá da porta havia um quarto, mas um diferente daquele que acabava de abandonar. Os seus olhos caíram na forma enroscada na cama.

- Estava a ver que não - murmurou a sua mulher, apoiando a cabeça no cotovelo para a levantar e piscando-lhe com ar sonolento. Hector sacudiu a cabeça e tornou a fechar a porta. Depois ele correu, tão rapidamente quanto as suas pernas o podiam levar, até o quarto ao fundo do corredor. Lá chegado, não se incomodou em acender a luz. Ele foi até ao berço, sentindo-se mais consciente que nunca do bater do seu próprio coração, e debruçou-se sobre a sua borda. Ondas de magia multicolorida radiavam do minúsculo corpo no seu interior, nem mais nem menos fracas do que da última vez que verificara. Mas os olhos de Julian encontravam-se abertos e atentos, e se ele se permitisse vê-lo, nos cantos deles havia prenúncios de escuridão.

Hector não soube quanto tempo permaneceu na mesma posição, com uma mão firmada na borda do berço e a mente em tumulto. Apenas quando o telefone tocou no andar de baixo, e tornou a tocar, e persistiu em tocar até ser certo que Amanda não tardaria a gritar-lhe que fosse atender, reuniu a força para se mover. Fechando a porta e trancando-a como se realmente acreditasse que uma fechadura manteria o seu filho seguro, ele caminhou até às escadas e desceu-as.

- Residência Klay. - Um barulho como o de algo a borbulhar veio do outro lado da linha quando ele atendeu. Hector deitou um relance ao número de quem chamava e imediatamente reajustou a sua voz e posição. - Nimarine. Deduzo que a missão não tenha corrido como o planeado.

- A rapariga. Patrão, algo terrível. Nós perdemo-la. Lamento, mas perdemo-la.

- Gostaria de poder afirmar que isso é uma surpresa. - Magda e os seus jogos tendiam a obedecer a certos padrões que ele aprendera a reconhecer. Era hilariantemente hipócrita que ela o acusasse de previsibilidade quando cada jogada que efectuava poderia ter sido extraída de uma das novelas que a sua mulher tanto apreciava. - Depois de ela se ter “acidentalmente” activado, provavelmente. Tens alguma ideia quanto ao seu possível paradeiro e que hipóteses temos de a recuperar?

- Ela caiu no…oh, eu referia-me à rapariga, a passante. - Nimarine era das mais imperscrutáveis almas que Hector alguma vez tivera o duvidoso prazer de encontrar em alguém que não possuía séculos de vida ou uma desordem mental. Ele acreditava-se capaz de a ler a maior parte do tempo, mas naquele momento, precisava de se confessar perdido. - Temos a criança connosco. Activada, infelizmente, e com consequências ainda mais infelizes. Mas a rapariga…ela largou-nos!

- A rapariga. Passante - repetiu Hector. - O que se passou para não a terem usado a Sarah?

- Ela…- O silêncio que se formou e estendeu do outro lado da linha disse-lhe tudo o que precisava de saber. Ele tentou conjurar uma imagem mental de Sarah Trimade que lhe permitisse lamentar a sua perda de maneira adequada, mas as únicas memórias a chegar à superfície eram da mulher a franzir o cenho, parecer maldisposta e gabar o facto de ter sangue de passante em adição a magia capaz de lhe conseguir a chefia do Trimadune. - Como eu disse. Consequências infelizes.

- E a passante que arranjaram para a substituir perdeu-se no limbo?

- Ela era verde, completamente verde! Nós dissemos-lhe que abrir os olhos era a última coisa que devia passar-lhe pela cabeça fazer, e a Val garante que essa é a primeira instrução que tentam prensar na cabeça de passantes em treino, mas ainda assim a estúpida rapariga deixou-se cair e…

- Farei os possíveis para assegurar que seja restituída ao Convénio, sã e salva. - Essa era uma tarefa logisticamente impossível de concretizar, razão pela qual não acrescentou a palavra “prometo” à declaração. O seu povo não possuía regras. A sua mera existência seria um incentivo para que fossem infringidas. Contudo, certas coisas eram tacitamente aceites como sendo mais que tabu. Cumprir promessas feitas não encimava a lista, pois a lista era isso. Prometer encontrar a passante extraviada sendo certo e sabido que tendo caído no limbo, esta acabaria ou em qualquer lugar ou em lugar nenhum, era algo que ele se encontrava impedido de sequer considerar.

Uma promessa teoricamente impossível de cumprir era suficiente para uma noite só.

- Bom - disse Ni, exalando de alívio. Era impossível que ela não conhecesse a pobre probabilidade de ele ir suceder no que lhe dissera que faria, mas se havia algo que Hector invejava em humanos, esse algo era a sua capacidade de deliberadamente se enganarem a si próprios. - Muito bom.

- Eu gostaria também de ver a criança, assim que for possível. - Um bip indicou-lhe que havia outra chamada em linha. Ele franziu a testa ao número desconhecido. Subitamente, a sensação de que desagradáveis acontecimentos se encontravam eminentes estava a regressar em força. - Há ainda uma última coisa, Ni. A criança que têm convosco. Ela é apenas uma, correcto? Não será possível a mãe dela ter estado grávida de gémeos e vocês terem falhado em dar pelo outro?

- Não havia nenhuma outra criança, patrão. Só a menina. E confie em mim quando lhe digo que só com sobrenatural intervenção esta aqui teria consentido em partilhar o ventre.

Hector enrugou a testa e fechou os olhos. Duas cartas. Morte e veneno, nascidos do amigo que ele atraiçoara, da linhagem que era a dos Senhores de Corsize, o que eliminava da equação o ocasional bastardo. Ele pensou em Kale e em Serge, os dois que eram descendência directa. Kale ele vira uma vez, de fugida, e a atenção que lhe dedicara na ocasião havia sido mínima. Serge fora o mote da sua visita. Serge, o imprevisto. O primeiro fragmentado em quase quinhentos anos cuja concepção os seus oráculos não tinham sido capazes de detectar. Hector recordava-se dele como o vira pela primeira vez, há vinte anos atrás: um rapazinho de olhos sérios que respondera com um encolher de ombros quando lhe fora explicado que abuso de poder seria punido com uma viagem sem regresso para Hoza. Que afirmara, quando ele lhe perguntara se compreendia o que acabava de ouvir, que tudo estava perfeitamente bem no que lhe dizia respeito. Porque se usar o seu poder lhe estava interdito, isso significava que se teria de esforçar no conseguimento dos seus objectivos.

Porque a sua natureza de fragmentado era a menos perigosa parte dele.

- Serge também tem um filho - disse ele, a sua voz soando distante. - Da idade do Julian, creio.

- Nós verificámos o rapaz. Nem réstia do…Outro Poder nele, posso assegurar-lhe.

- E suponho que o mesmo se poderia ter dito do seu pai, antes de o contrário se tornar óbvio.

- Sim, verdade, mas…- Ni hesitou. - Se me desculpar a pergunta…porquê todas estas perguntas?

- Razão nenhuma. No entanto, gostaria que investigasses o rapaz novamente, por precaução.

- Com todo o respeito, “razão nenhuma” parece-me uma péssima justificação. Especialmente tendo em conta que tanto o rapaz como o seu pai desapareceram, e encontrá-los será muito…

- Se estás assim tão relutante em fazê-lo, posso tratar do assunto eu mesmo - respondeu ele, nem se incomodando em mascarar a sua irritação. Permitir que os seus funcionários se lhe dirigissem como a um igual e contestassem as suas decisões era parte da sua imagem de chefe benevolente. Porém, aquela não era uma ocasião em que se sentia disposto a colher os amargos frutos da sua leniência. - Mas se for esse o caso, sugiro que comeces a pensar em procurar outro empregador.

Ele deixou o telefone cair, acto do qual se arrependeu no momento seguinte. Porém, este já estava a tinir antes mesmo de ele deitar a mão ao auscultador. O mesmo número desconhecido de anteriormente piscou diante dos seus olhos. Com mãos demasiado hirtas para tremer, Hector levou o telefone ao ouvido e aguardou. Silêncio respondeu-lhe, e depois mais silêncio. A pessoa do outro lado não se trairia respirando. Ao fim de minutos, ele ouviu o som longínquo de um automóvel, mas este não tardou a fundir-se numa quietude que nenhum deles queria tomar a iniciativa de quebrar.

- Elu - disse, ao fim do que lhe pareceu uma eternidade. Dizer o nome era declarar a sua rendição.

- Elmer - replicou a voz do outro lado, e Hector soube que acertara quanto à identidade de quem o chamava, não pelo seu timbre mas pelo tom. Ninguém mais conseguiria imbuir uma única palavra de uma tamanha quantidade de veneno. - Neste tempo sou Elmer, Etore. Elu morreu na montanha.

- Se insistes. - Todas as questões que ele desejava colocar foram caladas pela sua necessidade de permanecer no controlo da conversação. Assim, Hector não perguntou onde Elu-tornado-Elmer estivera nos seis anos desde a sua libertação. Ele não perguntou como este estava a passar, e ele não perguntou se ainda era o alvo principal da sua detestação. Duas dessas questões só seriam pertinentes se eles ainda fossem amigos, irmãos de espírito, e a terceira era uma cuja resposta ele conseguia prever. - E neste tempo, eu sou Hector. Posso perguntar o que te convenceu a ligar?

O “finalmente” implícito ficou pendente no ar enquanto o outro aclarava a garganta.

- Eu acabo de regressar de lá de baixo. De Corsize. Onde estive. A resolver um problema familiar.

- Ah. - Aquela era talvez a mais menosprezadora descrição da guerra de Corsize que ele já ouvira, mas outra coisa não seria de se esperar de alguém com uma mente tão…peculiar.
- Estavas acaso ao corrente de que o meu…o que quatroucinco é ele, afinal? Tetra-tetra-tetra-tetra-tetra-tetra-tetra-tetraneto? Seja lá o que for que ele é, o cretino decidiu brincar às guerras e eu não aprovei. Quando lhe perguntei o que ele julgava que estava a fazer e se estava com desejos de ir parar a Hoza, o catraio respondeu que tu lhe tinhas dito que ele seria deixado em paz enquanto os seus sucessos fossem obtidos por meios que um humano normal conseguiria emular. Confirmas?

- Confirmo. - Hector conseguia quase sentir a auto-satisfação do outro emanar através do telefone.

- Bem, eu decapitei-o e ele debandou. Portanto, esse probleminha pode ser declarado resolvido.

- Sim, eu fui informado da tua interferência. Há algo mais que desejes discutir comigo?

- Oh, sim, há. O que é que te fez pensar ser boa ideia deixá-lo fazer merda impunemente?

- Ele começou e travou uma guerra como humano. Não me compete nem a mim nem a ninguém do nosso povo interferir nos conflitos deles. Cabe à humanidade resolver os seus próprios assuntos, pois nós não somos deuses, Elu…Elmer, e nada nos dá o direito de agir como se o fossemos.

- Sabes, estava para te perguntar se continuas a ser um sacana armado em importante e íntegro, a quem falta levar uma tareia e desalojar um barrote do rego. Bom saber que isso não mudou, seu…

Cinco séculos, pensou Hector com alguma nostalgia. Cinco séculos, e nada mudara.

- Estou a ver que os anos também não melhoraram a tua habilidade de te exprimires com o mínimo possível de discrição. - Creandulo era um idioma cuja pronunciação melódica se prestava pouco a insultos, mas Elmer sempre conseguira encontrar métodos criativos de contornar esse obstáculo. Agora que se podia expressar numa linguagem em que não era precisos esforçar-se para chamar cobras e lagartos a outrem, era impossível prever de que vibrantes matizes pintaria o vocabulário.

- Não. - Houve uma pausa momentânea do outro lado, e depois Elmer falou, numa voz que Hector não teria acreditado ser a dele se não o soubesse. - Eu…preciso de te pedir um favor.

Cinco séculos, e o outro ainda conseguia colocar o seu queixo no tapete em minutos.

- Um favor - repetiu ele. A sua voz também não soou muito como a sua própria.

- Mais como, quero propor-te um acordo. Estou a ver-me aqui a braços com um pequeno problema.

- Que género de problema, e quais seriam as condições desse acordo? - Outra pausa seguiu-se, e enquanto ela durou, Hector teve a certeza de que algo semelhante com um choro se fizera escutar. As suas sobrancelhas franziram-se milimetricamente. - Elmer. Tens uma criança contigo?

- …talvez? - Foi a defensiva resposta com entoação de pergunta. Hector teria revirado os olhos, se não fosse por eles se encontrarem demasiado arregalados para serem capazes de movimento. As cartas estavam, como era inevitável que fossem, a cair no lugar. - História engraçada: depois de ter acabado de recolocar a cabeça no lugar, o meu neto com centos de graus de separação percebeu que estando vivo quando não devia estar, a tua gente não tardaria a vir atrás dele, e pisgou-se. Ora sendo eu uma mente precavida, deduzi que fosse tentar levar o pirralho consigo, para fazer dele um canalha de igual calibre. Novamente, algo que não aprovo. Portanto, antecipei-me e levei-o…

- Posso perguntar o que te fez pensar que isso seria boa ideia?

-…e depois paguei uns cobres a um mago que conheci num bar para que este lhe lançasse alguma magia para cima, porque depois daquilo em Krende eu não queria correr riscos, mas o fedelho…

- Ah, estás então ao corrente do que se passou. Devo dar-te as minhas condolências ou felicitar-te por teres mais um familiar que irá viver para sempre?

-…ele não quer parar com o whah, whah, whah, e ambos sabemos que eu não fui feito para criar o que quer que seja. Quer dizer, lembras-te daquele gato-dos-pântanos? E do gato normal?

- Um dos quais morreu por seres negligente com a sua alimentação, e o outro dos quais te tentou matar por seres negligente com a sua alimentação. Sim, eu recordo-me, e alegra-me que consigas assumir as tuas limitações no que toca a cuidar de um ser vivo, quanto mais uma criança. - Uma imagem de Elmer como pai extremoso veio-lhe à mente e foi imediatamente rotulada demasiado traumática para ser considerada. - O que pretendes fazer do rapaz, então?

- Eu…er. Eu estava a planear deixar que te encarregasses dele. - As palavras haviam saído com evidente custo. Hector processou-as mais custosamente ainda. Ele queria com força acreditar que não se tratava de um truque, mas saber que não havia modo de Elmer lhe fazer uma oferta que lhe facilitaria enormemente a vida obrigou-o a ser realista. - Tu e a tua gente têm meios de garantir que ele permanece normal e humano, certo? É claro que têm, a tua obsessão por nos eliminar a todos não deixaria que fosse de outro modo.

- O que eu estou a fazer dá pelo nome de controlo populacional - corrigiu Hector, acidamente. - Tu devias saber melhor que ninguém que eliminar-nos é impossível. Ele tem o poder, então?

- Nunca o saberias olhando para ele, mas sim, ele tem. E há outra coisa. Como te disse…ou antes, não disse, há uma condição. Chama-me irracional, mas mesmo tendo em conta as vantagens disso para ele e para mim, hesito em entregar-te o pirralho sem ter a certeza de que será tratado devidamente. Isso e Serge. Ele é família, apesar de ser um cretino. Significando que eu lidarei com ele daqui em diante. Quero a tua palavra, promessa, de que não mandarás que o façam fazer jurar pelo Pacto. O mesmo vale para o meu outro, er…neto. Cria-o como deve ser ou deixa-o em paz.

- Neta - corrigiu Hector. - E feito.

- Feito? - Se o choque na voz de Elmer não fosse figurado, este teria feito o telefone estremecer na sua mão. - Bem. Excelente. Não pensei que fosse ser tão fácil assim, mas…excelente. Obrigado.

Hector examinou os dedos da sua mão esquerda, aguardando o que sabia ir seguir-se.

- Mas vinda de ti, tanta generosidade tem de ter um motivo ulterior. Portanto, cospe. O que queres?

- Um favor. - O suspiro vindo do outro lado da linha comunicou-lhe que essa declaração não era de todo inesperada. - Não especificado, para ser cobrado numa data futura. Isso…e que me encontres alguém que se perdeu. Como é evidente, teremos de debater as minúcias e detalhes cara a cara.

- Como é evidente - replicou Elmer, num tom que lhe deu a entender que este podia ter aprendido a utilizar um telefone durante a sua permanência ali em cima, mas se encontrava longe de o aceitar como via para tratar determinados assuntos. Hector compreendia-o. Certas coisas eram sagradas.

- Proponho que nos encontremos na montanha - disse ele. - Em nome dos bons velhos tempos.

O som que Elmer emitiu foi um que uma garganta humana não teria sido capaz de produzir. Um choro começou e foi aumentando de volume até o outro grunhir, resmungar um “Shhhhh, Tim!” impaciente e sacudir o que Hector assumiu ser um brinquedo com guizos. Silenciada a corneta, ele tornou a dirigir-se-lhe, sem conseguir manter longe da sua voz uma nota de divertimento negro:

- Tim? Serge chamou-lhe Tim?

- Serge chamou-lhe algo completamente retardado. Eu renomeei-o Tim. Algum problema com isso?

- Absolutamente nenhum. Temos então um acordo? - A resposta que ele recebeu comprovou a sua anterior suspeita de que Elmer não perdera tempo a coleccionar idiomas coloridos. - Posso aceitar isso como uma afirmativa, ou gostarias de tentar elaborar? Temos todo o tempo do universo.

- Etore, têm-te dito recentemente que és um filho da puta merdoso? E traiçoeiro, não nos podemos esquecer do traiçoeiro. Porque se não for esse o caso, terei todo o prazer em regularizar as contas.

- Vemo-nos na vertente oeste, em quinze minutos - cortou Hector, largando o auscultador no lugar.

Ele não tentou o destino com o pensamento de que era impossível a noite piorar mais.

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Última edição por Moggo em Qui Set 13, 2012 10:26 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem por Moggo Dom Ago 12, 2012 6:42 pm

Marfire, foste responder-me no preciso momento em que eu estava a publicar o capítulo. Alguma coisa esquisita se está a passar aqui, porque penso que esta é a segunda vez que isso acontece.

Esses pdfs ainda existem? Estranho, podia jurar que os tinha eliminado a todos do blog. De qualquer dos modos, as edições que isto levou foram maiores só no primeiro capítulo. Os seguintes irão estar praticamente idênticos a como os tens, salvo algumas alterações ocasionais.

Ser detalhada é a minha mais valia e a minha cruz. Ainda chegará o dia em que irei escrever uma história simplezinha e com menos de cinquenta páginas de comprimento.

Gostei muito da Rana! Imenso mesmo. Quase tanto como gosto do Homem das Luvas!
Awww, dammitt, também tens cá uma *sorte*...ela nem sequer aparece no resto da história, excepto quando outras pessoas a mencionam.

De qualquer modo, espero que continues a acompanhar e que os avisos não te tenham assustado. E também, capítulo novo! *aponta para cima*
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Mensagem por Marfire Ter Set 04, 2012 9:33 pm

Bem, eu adoro basicamente cada parágrafo de tudo o que escreves. Simplesmente amo o teu estilo de escrita. Desculpa estar a comentar tão tarde mas ocorreram umas complicações e só tive tempo de vir cá de fugida. O capítulo está bom e esta foi, creio e se não estou enganado, a terceira vez que o li. Já o tinha lido naquele pdf. que antes tinhas disponibilizado no teu blog. Bem, eu gostei do capítulo e continuo à espera de mais. E li que isto era mais um exercício de world-building? Bem, estás a ir bastante bem, apesar de me ter surgido alguma confusão aqui no primeiro capítulo, com tanta coisa já exposta. Ainda assim, ótimo trabalho :cheers:
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Mensagem por Fox* Qui Set 06, 2012 1:07 am

Bem, eu já tinha lido este n'O Falecido mas não me lembro se cheguei a comentar por isso, há males que vêm por bem :D!

Prólogo:
"Estás segura" Que é que são apenas tremores de Terra, erupções de vulcões ou algo que acontece tão normalmente nessa tua zona? Nada a estranhar!
Achei engraçado que tivesses criado uma "Deusa" (semi-deusa? Titã? Humana? Alexandra Solnado dessa zona?) que não gostasse de religião. É incomum e divertido :).
Acho que me vou dar bem com ela...

Capítulo I:
Magia! Oh, eu adoro magia e worldbuilding que envolva coisas a explodir/voar/submergir/mudar-de-forma/etc de certeza que me vai divertir (yeah, I miss Harry PandaCry )
OK, ponto um: adorei a comparação do cabelo a um ninho! Divertiu-me imenso e não conseguia imaginar outro cenário que não o literal, dois pássaros a entrar por ali e a pousarem na cabeça da criança (sim, eu não gosto de miúdos, processem-me :D!)
Ponto dois: os nomes destas cidades/zonas/ilhas/que quer que sejam são... peculiares! Não é uma crítica, muito pelo contrário. Estou curiosa pelo que vais inventar a seguir.
Pergunta, vem tudo da tua mente ou usas geradores de palavras?
Ponto três: Obrigada pela soletração. Eu também não estava muito bem a ver como poderia dizer aquele nome :).
Ponto quatro: Gostei bastante da história que criaste em volta não só da criança, como das primeiras personagens em si. Estou curiosa para saber se esta pequena criança-slash-monstro se vai tornar no cliché das lendas de que nos falaste por alto ou se milagres acontecem mesmo...
E a Mena... Há coisas que precisamos de saber sobre ela! Não tem mesmo magia ou não aprendeu a utilizá-la? E ela nunca mais procurou a Rana? Gostava que ambas se encontrassem de novo...
Ponto cinco: É realmente agradável ver que as tuas expressões tão peculiares não mudaram e que continuas a conseguir surpreender com "barrotes saídos do rego". Já estou a gostar destas personagens! :D
Ponto seis e razão pela qual não o descrevi mais cedo: Ah e tal, isto não vai ter enredo... Ou então pouquinho! Tu tens mais enredo no primeiro capítulo que grande parte das histórias que já li (iria dizer a minha mas o meu orgulho não me permite admitir a derrota assim tão facilmente!).
Vais começar uma guerra "já" (daqui a um milénio, mais minuto menos minuto), com criaturas que, não podendo morrer, vão estar mortinhas por matar alguém (isto é tão esquisito), e achas que não há enredo? Ah, bom... *Fox vai bater com a cabeça na parede*.
Não sei o que hei de esperar... Gostei da Dama Branca (fixei esse nome :D) e da forma como ela já tinha tudo organizado, apenas à espera que o destino se organizasse. Gostei das cartas e espero vê-las mais vezes, porque me interesso bastante por temas assim. Gostei da conversa telefónica e destes dois seres, tão diferentes mas tão divertidos!
Estou à espera de mais monstros! Sem problema :D
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Mensagem por Moggo Dom Set 16, 2012 8:31 pm

Desculpem a demora em responder, Marfire, Fox. Deixem-me lá ver se consigo tratar de vocês dois individualmente :D

Marfire - Novamente, obrigada. E não precisas de pedir desculpa por nada (quer dizer, neste ponto das coisas já devias saber que eu ou não me importo ou perdoo tudo). É bom que tenhas falado na confusão e no excesso de conceitos introduzidos - foi um problema que também me foi apontado por outras pessoas a quem mostrei isto, razão pela qual estive a (novamente, eu sei, eu sei) retocar o prólogo e primeiro capítulo para ver se as coisas se tornam nem que seja um bocadinho mais claras.

Fox - Eu tenho a vaga - vaga - sensação de ter lido um comentário teu a isto, sim. Mas mesmo que já o tenhas feito, é bom ter-te aqui também XD Eu gostei de todos os teus comentários ao prólogo (aos do primeiro capítulo já lá vamos *smirks*), mas como podes já ter reparado eu, er, mudei-o. Porque descobri que a Rana era praticamente supérflua como personagem, e que para introduzir a Mena bastava o primeiro capítulo, e que podia usar o prólogo para dar algum background que fazia um pouco de falta. Portanto, ele foi novamente mudado. Desculpa por isso. (Acho que já vou na versão 3.0, gahhhhh.)

Acho que já sabias que temos o Harry em comum na lista de paixões, por isso o meu "Ámen!" ao teu "Eu adoro magia" não deve ser surpresa. Se bem que às tantas devia avisar logo agora no início que o sistema de magia daqui tem pouco ou nada em comum com o de HP. Quanto aos nomes, bem...eu costumo recorrer ao Behind the Name quando ainda não tenho algo inventado para uma personagem ou quando preciso de um que tenha um significado específico. (Óptimo site. Muito viciante. Se alguma vez tiver filhos - eeehhhh - saco alguns de lá para lhes colar em cima :P) No que toca a nomes de lugares...eu tento inventá-los sempre que posso - de onde os tiro, não faço ideia. Às vezes é só mesmo alinhar letras e ver o que soa razoável. Mas costumo ver se a nível de sons eles têm algo a ver uns com os outros - terminações em "a", k, x e sh pelo meio, etecetera. Mas Gwendolyn...esse é um nome (Inglês, se não estou em erro) que até nem é tão incomum. Acho que até há por aí uma cantora ou escritora com esse nome.

Estou curiosa para saber se esta pequena criança-slash-monstro se vai tornar no cliché das lendas de que nos falaste por alto ou se milagres acontecem mesmo...

Como o capítulo seguinte (que irá aparecer amanhã, se não me der um ataque de preguicite aguda) deverá atestar...não. Não, mesmo.

Como eu disse, a Rana foi apagada...até porque não estava a planear fazê-la aparecer novamente, e sendo assim era um bocadinho supérfluo estar a inclui-la. Quanto à Mena não conseguir fazer magia, isto não está escrito em pedra (como em, é uma regra que foi incluída na história e não pode portanto ser infringida), mas o limite é um tipo de poder por pessoa. Magia é o mais comum, mas depois há o Outro Poder - partilhado por passantes, fragmentados, e mais uns quantos - que é o que ela tem. Portanto sim, ser uma bruxa é mesmo algo que está fora da mesa para ela :(

Sobre o enredo, o que eu quis dizer é que isto se irá processar devagar. Muito devagar. Imensamente devagar. Tão devagar que ainda estarei a escrever isto dentro de uma década e tal, se tiver paciência e tempo.
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Mensagem por Moggo Dom Set 16, 2012 11:30 pm

Bem, eu prometi...e aqui o têm. Devido ao malfadado limite de texto do fórum, a continuação do primeiro capítulo encontra-se abaixo também.

Capítulo I - Mena (Continuado)

A primeira regra da passagem entre mundos era não encarrar o limbo de frente.

Mena esforçara-se para não gritar quando o líquido prateado na esfera-de-salto encontrara o corte que Ni fizera na sua palma. Prata e escarlate encontraram-se e faiscaram diante dos seus olhos, que ela imediatamente fechou. A primeira regra repetira-se e repetira-se e repetira-se e repetira-se na sua mente sem que o seu nervosismo se desvanecesse, e depois Frix tomara a sua outra mão, e Ni a outra mão dele, e Val a de Ni. E depois tinham havido olhos, olhos a ocupar o espaço onde os seus pensamentos se deveriam encontrar, e eles eram negros como o limbo, e os dela abriram-se involuntariamente, e o limbo em seu redor era negro como eles. E ela gritara, gritara porque o resto do seu corpo já estava a silenciosamente gritar por ela, e a sua mão soltara-se da de Frix. Ela sentira-a escorregar, sentira os seus dedos desagregar-se dos dele, e depois ela sentira-se cair.

Depois, nada. Nada durante tanto tempo que Mena julgou ir ensandecer, nada tão luminoso e cru que ela acreditou que os seus olhos acabariam por lhe ir derreter nas órbitas, e depois já nem havia tempo para a preencher com a sua passagem. Nada, e ela nele, e ele a fundir-se com ela.

- Mena do Convénio de Magia? - Som. Depois de tanto do fantasma de tempo que habitava aquele espaço-que-não-era-um-espaço ter decorrido em silêncio, o murmúrio foi como uma trovoada nos tímpanos dela, o calor da mão que veio com ele uma brasa incandescente contra a sua pele. Mena pestanejou. Negro ainda preenchia o seu campo de visão, mas no negro havia azul e violeta, e luz.

- Eu…- Ela tentou falar, mas as palavras fugiram-lhe quando a mão se fechou volta do seu pulso e puxou por ele. Com um ímpeto tão forte que a rapariga quase vomitou, ela foi arrastada através do infinito do limbo até um mundo que era real, tangível. Relva acariciou-lhe as faces. Após a privação sensorial a que havia sido submetida, contactar com algo sólido quase a levou às lágrimas. - Eu…

- Leva o tempo que entenderes - disse a mesma voz de antes, vinda algures de cima dela. Abrindo os olhos cautelosamente e tornando a piscá-los, Mena conseguiu identificar uma forma vagamente humanóide. - E as minhas mais sinceras desculpas pela demora. Encontrar-te não foi fácil.

Inicialmente, ela julgou que os seus ouvidos ainda estavam a funcionar incorrectamente. As palavras que escutava eram compreensíveis, ou a maioria delas era-o, mas o resto era ininteligível. Tardiamente, a rapariga entendeu que o seu salvador não estava a falar em creandulo. Ela sabia o suficiente da linguagem críssia e dialecto das ilhas para saber que também não se tratava de uma delas. De súbito, a memória de onde ouvira falar daquele modo atingiu-a. As aulas de cultura do…

- Este…eu estou…- Ela lutou para falar. - Estou no Mundo de Cima?

- O quê? Não. Radavask, Lesu. Ou perto de Radavask, em todo o caso - replicou o desconhecido, desta feita em creandulo perfeito. Mena era finalmente capaz de formar dele uma imagem que não se encontrava inteiramente desfocada. Ele gesticulava para algo à sua esquerda. - Segundo sei há uma filial do Convénio lá, mas isto é o mais perto que te consigo trazer de uma cidade mágica sem que o túnel seja desfeito antes de lá chegar. Terás de andar o resto do caminho.

- Lesu - repetiu Mena, tentando situar a facção no seu mapa mental. - Lesu. Costa oriente?

- Sim, isso. - O desconhecido estendeu-lhe uma mão que ela hesitou em aceitar, mais por ainda se encontrar demasiadamente atordoada do que por julgar que este lhe queria mal. Era difícil olhá-lo e pensar que ele constituía perigo. O homem à sua frente devia encontrar-se na casa dos cinquenta, e era uma figura pitoresca se ela alguma vez vira uma. As suas roupas, estranhas de cor e material e mais adequadas a um lavrador que ao mágico que Mena assumia que ele era, abraçavam um tronco constituído como um tonel de vinho e um par de pernas atarracadas. Havia um cachimbo na sua mão, por nenhum motivo que ela fosse capaz de discernir. - Elmer de Klei, ao seu serviço.

- Mena de Mondane. Do Convénio - disse ela, lembrando-se tarde demais que ele já sabia isso.

- Eu espero que sim, pois sentir-me ia muito irritado se tivesse desperdiçado meses e acabado por trazer de volta Não-Sei-Quem de Não-Sei-Que-Parte. A questão é esta, meu amor: foi-me pedido, digamos assim, que te trouxesse de volta. Querendo dizer que és uma jovem muito, muito sortuda, pois um passante perdido e sem um benfeitor teria sido deixado onde te encontrei. Ele apresenta-te as suas desculpas, a propósito. Não que sejas obrigada a aceitá-las. Sentir-me-ia até melhor se não o fizesses, visto que o sujeito é um cu, mas isso é irrelevante para esta conversa.

- Eu…quem? - ecoou ela, levantando-se num ápice, enredando os pés nas saias no processo e caindo para trás com um guincho de surpresa. O outro apanhou-a nos braços com um suspiro de impaciência. Mena pestanejou furiosamente. Ela podia jurar, ela sabia que ele tinha estado à frente dela um instante antes. Magia, sussurrou a parte do cérebro dela que começava a recuperar as suas faculdades normais. Então ela olhou para ele. Um grito de terror embrulhou-se bem fundo na sua garganta, e quando este finalmente escapou, foi sob a forma de um arquejo estrangulado.

A rapariga debateu-se, tomada de pânico. Elmer suspirou e pousou-a no chão.

- Esperava que fosse demorar um pouco mais até chegarmos a essa parte - resmungou ele.

- Monstro! - Mena recuou para longe, atabalhoadamente. Os seus olhos pareciam estar a recusar-se a deixar de ver o que haviam visto. A rodear o outro como um manto tecido com furacões havia o negro do limbo, ofuscante, cegante e familiar de todas as mais erradas maneiras. - Abominação!

- Mulheres! - Elmer revirou os olhos e deu de ombros antes de avançar até ela. Ele pareceu mudar de ideias quando a rapariga abraçou os joelhos e se encolheu sobre si, a estremecer e implorar. As suas sobrancelhas franziram-se com um trejeito frustrado. - Francamente, eu acabo de te salvar de uma das mais desconfortáveis perspectivas de como passar a eternidade que existem, e é assim que me agradeces? Está bem, eu nem discuto. A cidade onde irás encontrar os teus confrades, ou irmãos, ou lá o que é, fica naquela direcção. Se te colocares a caminho agora e não parares, talvez chegues antes do anoitecer. E pelas profundezas do Pai-Túnel, recompõe-te!

- Por favor…- O murmúrio dela fê-lo perder a paciência. Com um gesto seco, Elmer agarrou-a pela parte de trás da gola e puxou-a para cima, colocando-a de pé. Ele examinou-a por uns momentos, com a cabeça inclinada para o lado como se ponderasse se largá-la acabaria com ela outra vez no chão. - Deuses perdidos e bondosa Dama Branca, rogo-vos que me protejam deste…

- Há pouco de bondoso nessa puta, isso te garanto. Se a conhecesses, percebias. - O fragmentado largou-a e afastou-se um passo. Mena pensou em aproveitar a oportunidade para escapar, mas as suas pernas recusavam-se a obedecer-lhe. - De qualquer modo, o meu trabalho aqui está feito e a minha dívida parcialmente paga. Tenha um excelente resto de dia, minha não-tão-gentil donzela.

Mena só conseguia olhá-lo, muda e paralisada pela improbabilidade do que via. Ela passara uma vida inteira sem saber mais dos fragmentados que aquilo que a história contavam. Deparar-se com dois num tão curto espaço de tempo não podia ser coincidência. Significando que apesar de o seu único desejo ser correr, algumas questões precisavam de ser colocadas.

- Eu não compreendo - sussurrou ela. A sua voz soava histérica até aos seus próprios ouvidos. - O que…eu não…o que é que me aconteceu e…o que quer de mim, e por favor, suplico-lhe, se ainda reside em si algo de bom e piedoso, deixe-me ir! Eu não sou ninguém, não sou importante, eu…

- E eu sei todas essas coisas. - Ele sorriu. Não de forma ameaçadora, não para exibir dentes, não friamente. Se Mena não soubesse melhor, ela diria que ele procurava tranquilizá-la. - Uma vez que passaste meses trancafiada no limbo e claramente ainda não te encontras recuperada, vou perdoar que tenhas falhado em perceber que não tenho intenção de te impedir de ir. Na verdade, já repeti múltiplas vezes que a cidade é para ali e que podes desandar quando quiseres. Que mais queres, que te consiga uma carroça e desenhe um mapa? Porque se é assim, não seja por isso. Afasta-te.

Mena não teve oportunidade de inquirir porque devia fazê-lo, pois uma carroça caiu do céu e aterrou a três passos de onde ela estava parada, seguida por uma muito apavorada mula. A mula em questão reajustou-se às circunstâncias com admirável estoicismo. Ela não. Soltando um berro de fazer cristal rachar, a rapariga disparou na direcção oposta. Embater de cara contra um muro de carne obrigou-a a parar. A sua cabeça ricocheteou para trás, ao mesmo tempo que os seus olhos e boca se abriam desmesuradamente. Os primeiros de pavor, a segunda para tornar a gritar.

Elmer estampou uma mão sobre os lábios dela antes que conseguisse fazê-lo.

- Vamos a ver se nos entendemos. Eu esforcei-me para dar contigo, e podes estar certa de não ter sido altruísmo a minha motivação para o fazer. Mas eu também podia ter-me limitado a arrancar-te do limbo e abandonar-te aqui, sem direcções ou meios de chegar à civilização. Agora, eu confesso que as coisas podem ter mudado de há séculos para cá, mas no meu tempo existia algo chamado educação. Portanto, eu vou largar-te. E tu vais educadamente agradecer-me a ajuda, não é assim?

- Mmmmpppphhh!

- Eu vou escolher interpretar isso como um sim. - O fragmentado recuou uns passos e observou-a, expectante. Mena tragou uma golfada de ar e deu um passo atrás na direcção oposta. - E já agora, um pedido de desculpas pelo assunto do monstro/abominação também seria agradável. Porque, e isto poderá surpreender-te, essas não são palavras que devas usar liberalmente. Nada garante que não estás a atirá-las a alguém a quem se aplicam, e suspeito que uma conversa daí resultante não seria tão pacífica como esta que estamos a ter. Eu chamaria a isso um conselho de sobrevivência, se não suspeitasse que sobreviver não vá ser um problema para ti daqui em diante.

- Eu agradeço-lhe. Obrigada! - exclamou Mena, muito depressa. Ela desviou o olhar para a mula, que os fitava a ambos com uma espécie de desinteresse vago, e devolveu-o a Elmer. Socorrendo-se das suas últimas reservas de coragem, ela atreveu-se a sussurrar: - Você…é um fragmentado.

- Correcto. Excelentes poderes de observação, os teus. Posso deduzir que a minha fragmentação constitui um problema? - Ela acenou, pressentindo que mentir lhe traria repercussões mais azedas que limitar-se a admitir a verdade. Porém, Elmer estava a encará-la com uma expressão que tinha mais de condoída que de irritada, o que não contribuiu de modo nenhum para a acalmar. - Sugiro então que trabalhes em ultrapassar isso, pois tudo indica que o Destino te decidiu servir uma dose caprichada de ironia. Deterioraram-se tanto as coisas que já nem vos ensinam a primeira regra?

- A primeira r…- A rapariga entendeu num repente a que se referia ele. Lealdade institucional lutou com temor e ganhou. Ela cruzou os braços de maneira defensiva. - O Convénio de Magia dispõe dos mais sábios e talentosos instrutores para todas as artes cujo ensino patroneia, e dos maiores…

- E mesmo assim, nenhum deles se incomodou em ensinar-te a primeira regra? De te informar das consequências de infringi-la? - Elmer estava novamente a aproximar-se dela, desta feita de modo despercebido. Por algum motivo, a sua proximidade física deixara de a atemorizar tanto como de início. O olhar que ele tinha cravado no seu rosto pálido e as notas insinuantes da sua voz haviam-se tornado sintomas de perigo cujos clamores por atenção ressoavam muito mais alto. - Tu és uma dos puros, não és? Cem por cento passante concentrada, sem uma faísca de magia para o diluir?

Mena anuiu. O seu coração batia descompassado, e ela queria com força correr, correr…

- Estou a ver - acabou Elmer por declarar. Um silêncio desconfortável seguiu-se. Ela baixou o olhar para as pontas dos seus sapatos. Ele brincou com o fornilho do cachimbo. Depois de minutos que se pareceu arrastar eternamente, o fragmentado prosseguiu. - Não restam dúvidas, então.

- Dúvidas…de quê? - Olhos como chispas de obsidiana imiscuíram-se nos seus pensamentos e permaneceram neles, a pulsar como um órgão excedente. Ela não quisera cair. Ela não planeara abrir os olhos. Algo a forçara a isso, e ela acabava de entender, após revirar a mente em busca da resposta, que não fazia ideia de quais as consequências que o outro referia. Não olhar o limbo era a regra, mas a sua razão de ser era um mistério. Incomodava-a que se estivesse a dar conta disso apenas naquele momento, quando um pouco mais de informação seria uma salvaguarda.

- Magia ter-te-ia protegido. Talvez te tivesse protegido. Foram seis meses, afinal de contas. Esperar que os poderes do limbo não a consumissem em metade desse tempo seria ingénuo. Portanto, não acredito que acabasse por adiantar de muito. Mas teria sido uma ajuda. - Elmer parecia falar mais para si que para ela, um estado das coisas que Mena não podia afirmar ser do seu desagrado. Em particular porque uma força maníaca se parecia ter apoderado dele. No espaço de um segundo ele estava diante dela, uma das suas mãos calejadas a agarrar-lhe o queixo e erguê-lo e os seus olhos a escrutiná-la com inquietante insistência. Ela não ousou falar, ou sequer mover-se. - Claro que se considerarmos a quantidade de cretinos que o poderiam decidir fazer intencionalmente, talvez seja inteligente que se faça segredo das consequências. Sabes como nasceu a nossa raça?

- Eu não…nossa? - Ele largou-a e virou o rosto para o céu, fechando os olhos como que em prece.

- Era uma vez uma aldeia chamada Klei, na era em que existia o Império e não as facções - entoou ele. - E havia cinco sábios nela, cinco que abriram a caixa que não devia ser aberta, leram do livro proibido, espreitaram para trás do espelho mágico e rasgaram o limbo aberto e fizeram-no sangrar, e pela fractura resultante o Outro Poder inundou este mundo e encheu-os a eles. Esse é o conto da nossa génese, e esta é a lição que dele deve ser retirada: existem mistérios que a humanidade não pode desvendar e conservar-se humana, e partes da realidade que não cabe aos seus olhos ver. E porque isso é verdade, foi criada a primeira regra da passagem, mas pelos vistos já não a ensinam hoje em dia. O limbo muda-nos, Mena do Convénio. E tu passaste meses perdida nele.

- Está a mentir! - bradou ela, sentindo a sua voz quebrar-se de tão repleta de terror que estava. Ele mentia, ele mentia ou ele estava louco. Não havia outra explicação possível. Nenhuma explicação que se encontrasse disposta a aceitar. - Eu não mudei, e não estaria viva se tivessem passado…

Mena calou-se; o fragmentado estava a deitar-lhe um olhar altamente significativo.

- Conselho de amigo - disse ele. - Se tornares a ver os que estavam contigo, corre. Apenas corre.
Capítulo II - Quinze Anos Depois
Elmer olhou para o rapaz deitado aos seus pés. As suas sobrancelhas franziram-se á visão, o que aliado à sua boca ainda estar caída de quando escutara o bizarro pedido que lhe acabava de ser feito, conferia ao seu rosto uma expressão caricata que em nada se ajustava àquilo e a quem ele era. O rapaz encontrava-se inconsciente, e ele serviu-se da sua inércia para o examinar. Alto e esguio como o seu pai era, tinha sido, mas nele as qualidades que a Serge haviam concedido uma aura de predador prestes a atacar apenas faziam parecer que o haviam pendurado num esticador por dias a fio. Cabelo negro como tinta que lhe descia até aos ombros, e era um alívio para Elmer que tudo indicasse ser essa a única parte negra dele. Doentiamente pálido, também. Foi esse o detalhe que fez o fragmentado erguer a cabeça e lançar ao outro rapaz um olhar inquisitivo.

- Eu fiz um acordo com o teu pai. Tratá-lo devidamente, creio terem sido essas as minhas palavras.

- Segundo todos os relatórios que li, ele foi tratado devidamente. Mas há pouco a ser feito quando o passatempo favorito de alguém é trancar-se no quarto a jogar MMORPGs, lamento dizer.

Elmer encarou o outro e esperou que a sua confusão não fosse demasiado evidente.

- Esses…jogos de morpos…são perigosos? - inquiriu, espiando os olhos do rapaz em busca de um sinal de que estava a ser ludibriado. Ele tinha os olhos de um fragmentado, e Elmer tinha a certeza de que tinham sido alterados de propósito para aquele encontro, de modo a torná-lo imediatamente reconhecível. Como se a aura de poder que o envolvia não parecesse, para aqueles capazes de ver, o espelho negro de uma supernova. Como se um mortal o tivesse sabido encontrar. Como se ele não tivesse sabido com o que tratava no instante em que aquele com quem tratava lhe revelara o seu nome. Como se ele não fosse a cara cuspida e escarrada de um rival detestado.

- Não - disse Julian Klay, com o que lhe pareceu ser um pingo de divertimento. - Não, de todo. Mas eu tenho mesmo de perguntar, já pensou na sua resposta?

- A minha resposta é não. - O rapaz anuiu, sério, como se aquilo não fosse uma surpresa. Ele tinha tanto do seu pai que era desconfortável encará-lo. As semelhanças transcendiam o aspecto, que para um fragmentado era uma variável. Olhando-o, falando-lhe, e tendo convivido o suficiente com Hector para reunir material de comparação, era impossível não ver que pai e filho eram mentes do mesmo molde. Sacanas até ao âmago, ambos eles. - Se estás tão desesperado…tenta Hoza.

Ele retirou uma espécie de prazer perverso de ver o outro arregalar os olhos e estremecer.

- Hoza não seria uma boa ideia - murmurou este. - Estou preparado para fazer um acordo.

- Eu aprendi há muito qual o preço de fazer acordos com o teu pai, miúdo. A resposta ainda é não.

- E eu não sou o meu pai. - O rapaz baixou os olhos para o chão, antes de acrescentar, numa voz tão incaracterística de um Klay ou fragmentado que Elmer foi abruptamente recordado de que a aparente juventude dele correspondia à realidade: - Ele não sabe que eu vim. Ele não sabe sequer que falei com ela. Tenho a certeza de que tentaria impedir-me se soubesse. Mas é o meu destino!

- Destino? - Os anos haviam-no ensinado a desconfiar daquela palavra. Ele semicerrou os olhos, e o rapaz procurou por qualquer coisa dentro dos seus bolsos. Quando a encontrou e exibiu, Elmer resistiu à tentação de grunhir. - Oh. Oh! Um desses destinos. E falaste com a Dama em pessoa?

- Sim. - Julian revirou a carta entre os dedos, distraidamente. - Ela é uma pessoa muito…intensa.

- Ela não é uma pessoa, miúdo. Será possível que o teu pai não te tenha ensinado nada?

- Não posso dizer que o que ouvi dela me agrade - continuou o outro, o seu tom indicando que não desejava dignificar aquele comentário com uma resposta. - Mas é fútil resistir quando se caminha o caminho das cartas, e tudo o mais. O seu neto mostrou-se mais entusiasmado do que eu, mas isso apenas porque não tenho a certeza de que ele entende no que se está a meter.

- Um momento. - Elmer levantou uma mão e respirou fundo, tentando desenredar os pensamentos que se emaranhavam na sua mente. Ele olhou de Julian para o seu neto desmaiado, e novamente para Julian. - Tu levaste-o. A conhecer a Dama Branca. Diz-me porque não te devo destruir agora.

- Porque ela nos convocou a ambos - respondeu o rapaz, e desta vez Elmer grunhiu de facto. Uma convocatória. Coisas dessas nunca acabavam bem para todos os envolvidos. - Há um jogo prestes a ser iniciado, e o que lhe pedi que fizesse é a minha condição de participação. Segundo a nossa honrada senhora, todas as peças no tabuleiro devem começar iguais.

- Eu sempre disse que ela devia deixar o motivo das cartas e começar a jogar damas - resmungou Elmer. Depois ele registou a significância do que acabava de escutar, e sorriu. - Ah, estou a ver. O teu pai treinou-te demais. Não posso dizer que a censure por querer tornar as coisas mais justas.

- Não há justiça no caminho das cartas. Isso é sabido e isso é tido como vero.

- Bem dito, mas mantenho a minha decisão. Sobretudo agora que sei no que me estaria a meter.

- Por favor. - O fragmentado olhou o rapaz com silenciosa admiração. Pai-Túnel fosse louvado, ele era Hector Klay rejuvenescido. Duas palavras, e elas continham tudo: aquela honestidade tão pura que era impossível crê-la falsa até muito depois de se ter engolido o isco, aquela inabalável crença de que o seu interlocutor acabaria por aceitar fazer a sua versão particular do que era certo, aquele ameaço de que ambos os sentimentos se converteriam em decepção caso recebesse uma recusa.

Ele conhecia aquela entoação bem demais para se deixar manipular por ela.

- Não - replicou, firmemente. - É inútil apelar às minhas emoções. Assim como tentar chamar-me àquilo que consideras razão, duvidar da minha coragem, subornar-me e convencer-me à força. Eu irei ignorar-te, rir-me na tua cara, e obliterar-te. Portanto, porque não passámos para a fase em que me ameaças? Afinal, se te deste ao trabalho de arrastar até aqui os meios para o fazer…

- Ameaçar? - Era curioso, mas o jovem parecia genuinamente confuso. Os seus olhos seguiram os de Elmer, para irem cair sobre o rapaz caído entre os dois, e compreensão iluminou-os. Indignação foi rápida a seguir-se. - Não foi para esse fim que o trouxe. Eu nunca…eu nunca faria isso.

- Não? - Elmer ergueu uma sobrancelha, impressionado mas descrente. - Isso é uma promessa?

- Sim. - Essa réplica surpreendeu-o. Especialmente porque Julian não hesitara em dá-la. - E antes que lhe ocorra perguntar, eu sei. Palavra dada não pode ser quebrada, e eu não tenciono.

- Então…- Ele passou a língua pelos lábios, desta feita genuinamente intrigado. - Como tencionas tu convencer-me se todas as usuais tácticas de persuasão estão fora da mesa, não me explicas?

- O meu pai - disse Julian, enunciando cada sílaba com cuidado - não sabe que eu estou aqui.

- Eu sei. Já disseste isso.

- Ele ignora que lhe estou a pedir isto, e duvido que fosse ficar satisfeito se soubesse.

- Eu também já sei isso.

- Na verdade, tenho quase a certeza de que se soubesse, ele ficaria irritado. Furioso, até.

- E eu também já…- Elmer deteve-se. - Furioso? Quão furioso? Numa escala de um a adjectivo?

- Absolutamente, garantidamente, categoricamente, monumentalmente, gloriosamente, furioso. Até me atrevo a dizer que aceitando lhe estará a estragar o mês inteiro, senão mesmo todo o Verão.

- Hm. - Era tentador, isso ele precisava de admitir. Hector estragara tanto para tantos que era nada além de adequado que o obrigassem a engolir uma dose do seu próprio veneno, e que fosse o filho do próprio a servi-la era a mais perfeita guarnição que o fragmentado conseguia conceber. Mas ele hesitava em abrir os braços aos problemas de associar-se com um dos jogos dela, especialmente quando este se encontrava prestes a começar. Mas ainda por outro lado, os problemas que fazê-lo traria ao seu velho inimigo seriam consideravelmente maiores e…- Miúdo? Temos acordo.


Miranda Dale tinha perfeita consciência de que a sua vida não era o que se poderia chamar normal. Ou a parte da sua vida que encarava como sendo real, em todo o caso. Andar até à escola e assistir às aulas, sair das aulas e passar o intervalo sentada na cantina com um livro sobre o colo até muito depois de os seus colegas terem acabado de comer, regressar às aulas, tornar a sair das aulas e voltar ao Instituto, essas eram coisas comuns o suficiente. Mas ela fazia-as, passava por elas, com o mínimo de interesse e de forma quase alienada. Apenas quando os portões gradeados do Instituto se escancaravam para lhe dar entrada tinha ela noção de que existia. Fora dele, ela era uma sombra. Insignificante, transparente, tão irreal como tudo em seu redor. Dentro, no entanto…

- Estás atrasada. - A voz estalou como uma chicotada quando ela empurrou a porta do quarto e se introduziu nele. Miranda segurou um suspiro e pousou a mochila num canto, tomando cuidado para não fazer barulho. Wendy estava com uma das suas disposições estranhas. Não que a sua melhor e única amiga possuísse disposições que pudessem ser classificadas como normais, mas aquela afigurava-se-lhe mais instável que o costume. - Já passa das cinco. O que é que estiveste a fazer?

- Eu precisei de passar pela biblioteca. Desculpa.

- Não podias ter feito isso noutro dia qualquer? - ripostou Wendy, cheia de impaciência. Elas eram diferentes como a noite do dia. Miranda era alta. Se Wendy fugia ao rótulo de anã era um tema sob discussão. O cabelo de Miranda era uma nuvem de caracóis loiro-claro, que esta trazia sempre soltos sobre os ombros. O de Wendy era preto e um escravo do rabo-de-cavalo. Wendy carregava no seu rosto de feições afiadas um ar de mau humor permanente. Miranda não era capaz de se recordar da última vez que o seu não se mostrara doente de ansiedade. E mais importante, Wendy era a definição do dicionário de psicopata. Miranda sabia isso porque procurara por ela. - Eu tenho planos para hoje. Planos importantes, e gostaria de me manter dentro do horário.

- Desculpa, Wendy - repetiu ela, não se incomodando em referir que se esta tinha planos, informá-la deles com antecedência teria evitado aquela situação. Ela não o fez, pois Wendy interpretá-lo-ia como uma atitude desafiadora, e Wendy não apreciava atitudes desafiadoras. Miranda sabia o que era esperado dela, e o tempo ensinara-lhe que era perigoso frustrar essas esperanças. Fazendo-o, arriscava-se a fazer a outra jovem pensar que havia partes dela que precisavam de emendas, e ela já fora suficientemente emendada por Wendy para saber que não se tratava de algo desejável.

- Não tem importância - disse esta. - Como foi a escola?

- O mesmo de sempre. - Wendy era educada em casa, por assim dizer. Tirá-la da escola tornara-se uma necessidade depois do incidente de há oito anos atrás. A sua melhor amiga sempre tinha sido inteligente, demasiado inteligente e demasiado ansiosa por o demonstrar para ser apreciada pelos professores, mas não fora isso o que assinara a o seu certificado de expulsão. A última gota caíra quando a haviam descoberto na casa de banho do segundo andar, a puxar o autoclismo na cabeça de um colega de turma. Quaisquer ideias que o quadro directivo pudesse ter de a deixar ir só com uma reprimenda haviam sido postas de lado quando ao invés de se desculpar por tentar humilhar o rapazinho em questão, Wendy olhara cada um deles com incredulidade e perguntara o que os fazia crer que se tratara de uma tentativa de humilhação. De seguida ela fornecera-lhes a definição de homicídio qualificado, e esse havia sido o fim das suas aventuras no ensino público.

- Chato de fazer ressonar e completamente irrelevante para a tua vida futura? - Ela anuiu.

- O que é que tu fizeste durante o dia? - arriscou-se a perguntar, apesar de aquilo com que Wendy se escolhera ocupar ser evidente. Toda a mobília do quarto que partilhavam fora empurrada para o canto dele, e as paredes encontravam-se cobertas de linhas traçadas a marcador preto. Mapas. De quê, Miranda não sabia e não estava desejosa de perguntar. Não querer saber demasiado era uma boa política para se adoptar quando se vivia com alguém tão especial como Wendy. Especial era o mais suave eufemismo para seriamente desequilibrada que ela conseguira arranjar, e seriamente desequilibrada era por sua vez um eufemismo para coisas que não deviam ser nomeadas.

- Isto e aquilo. - Wendy fez um gesto de varrer, e num instante as paredes encontravam-se limpas e brancas, sem traços de marcador nelas. Depois ela sorriu, o que era preocupante. Wendy era capaz de alternar entre normal, vilã de filme de terror e fada-madrinha demente sem ter de passar por estados intermédios, como se houvesse na sua cabeça um duende com défice de atenção que se divertia a brincar com os interruptores correspondentes a cada estado. Nenhum era mais seguro que os outros, mas o terceiro era sem dúvida o mais perturbador. - Seja como for, tenho uma semi-reunião de família às seis, e estava a pensar se gostarias de vir comigo. Para dar apoio moral.

Miranda pestanejou. As palavras ecoaram na sua mente sem conseguirem fazer sentido.

- Reunião de família? - Wendy acenou com vigor. - Mas tu…uh…Wendy? Tu não tens família.

- É claro que tenho - replicou esta, sacudindo a cabeça como se lamentasse a idiotice dela. - Toda a gente tem uma família, Miranda. Quer dizer, todos precisámos de vir de algum lugar, certo?

- Bem, sim…- Ela deixou a sua voz morrer. Os seus pais haviam sido emigrantes vindos da facção de Brone. Refugiados, melhor dizendo. O Instituto de Assuntos Intermundiais recebera-os, pois era essa a sua função, mas ambos haviam sucumbido à febre escarlate pouco depois do nascimento dela. Ela permanecera entre as suas paredes e passara os primeiros anos da sua vida colada aos calcanhares dos seus habitantes, a observar as suas andanças e a colocar questões. A maioria ia e vinha, mas havia umas quantas caras que eram permanentes. A senhorita Ebbs era uma delas, e fora esta quem acabara por sugerir que talvez lhe fizesse bem ter alguém da sua idade com quem conversar. Miranda recordava-se de se ter sentido exultante. E depois ela conhecera Wendy.

- Além disso, irá ser divertido. Desconfio que irás gostar do meu avô, ele é uma peça. E ouvi dizer que o meu primo está muito nessas coisas de dragões e cavaleiros e todas as outras tretas que tu adoras, por isso pelo menos irão ter tema de conversa. E, oh, e um dos meus tios tentou conquistar o mundo há uma data de anos atrás, lembra-me de lhe pedir dicas sobre como não o fazer. Depois há o lado da família da minha mãe, que é o que lá em baixo funciona como realeza e portanto não espero ser grande coisa, mas isso não importa porque irão ser todos chacinados.

- E, uhm…toda essa gente virá aqui para cima? - perguntou ela, algo céptica. O túnel entre mundos raramente abria em dias que não os programados, e era sexta-feira. Os últimos emigrados deviam ter chegado no dia anterior. Ela assistira à sua chegada, e duvidava que os parentes de Wendy lhe teriam passado despercebidos caso se tivessem encontrado entre eles.

- O quê? Claro que não. Nós vamos lá para baixo. Portanto, trata de juntar as tuas coisas. Rápido!


- Mas eu não…- começou ela a dizer. No entanto, Wendy já a estava a empurrar, e Miranda deu de ombros, resignada. Os seus desejos eram irrelevantes, ou tornavam-se irrelevantes quando os confrontava com o facto claro e duro de que se eles contrastassem com aquilo que Wendy queria, Wendy acabaria com ela. - Quando tempo ficaremos lá? Tenho de saber quanta roupa devo levar.

- As tuas aulas terminam para a semana, não é? - Ela anuiu. Houve um milissegundo de pausa por parte da outra rapariga, e depois esta estava novamente em movimento e a falar ininterruptamente enquanto cirandava pela divisão. - Deves poder perder alguns dias, parece-me. Não é como se dar matéria fosse uma preocupação com as férias à porta. Estou a contar ficar lá pelo menos um mês.

- Um mês - repetiu Miranda. Wendy acenou e deu-lhe as costas, o que era bom. Se ela lhe via as costas, isso significava que Wendy se encontrava à sua frente, e se Wendy se encontrava à sua frente, isso queria dizer que Wendy não estava atrás dela. Wendy não era o tipo de pessoa que se devia querer ter atrás de si, pois Wendy tinha o inquietante costume de ver as costas dos outros como lugares onde espetar facas. - E…posso deduzir que falaste com alguém acerca disto?

- Claro que falei - respondeu esta, virando-se de súbito e sobressaltando-a no processo. Ela estava a revirar os olhos com tanta força que era motivo de pasmo que ainda não tivessem caído. - Fui ter com a Val pela manhã, para a informar de que tenciono encontrar-me com os meus parentes super malvados e distribuir caos, destruição e aniquilação pela pequena fatia deles que não o é, e se ela me dá autorização para ir fazer isso mesmo. Cristo, Miranda. Arranja um cérebro.

- Mas se ninguém te deu autorização, como planeias tu fazer-nos passar?

- Oh, isso? Não te preocupes, tenho um plano - disse Wendy, soando segura de si. Não que esta alguma vez soasse insegura de si. - Quanto à roupa, leva só a muda que deixei no armário. Essa é das tais coisas para as quais dá jeito ser uma pseudo-princesa: acesso a todos os vestidos bonitos e extravagantes. Às tantas até te consigo desencantar uma tiara, se quiseres uma. Interessada?

- Uhm, não, agora não, mas obrigada na mesma. Tu…combinaste com os teus parentes. Certo?

- O meu avô ficou de nos vir recolher, e presumo que ele tenha explicado a situação ao meu primo. O meu tio é mais suspeito, mas não deverá ir reagir assim tão mal devido a toda a coisa do filho há muito perdido agora encontrado, etecetera, etecetera, e como eu disse, os outros são irrelevantes.

- Sim, tu disseste. Eu…uh…desculpa, Wendy, peço imensa desculpa, mas não gosto dessa ideia.

- O quê, matá-los? - Wendy fez uma careta e abeirou-se dela, parando à sua frente e sorrindo com o que Miranda aprendera a reconhecer como sendo o seu ar falsamente tranquilizador. - Está tudo bem, não tens de pedir desculpa. Quer dizer, não é como se soubesses o que fazer, por isso podes só assistir enquanto eu trabalho e sentar-te num canto com um livro se as coisas ficarem chatas.

- Mas…- Miranda respirou fundo. Por vezes ela interrogava-se se conseguir reagir com tanta calma quando a sua melhor amiga se saía com uma declaração similar dizia más coisas acerca dela. - Eu não sei, não podes mesmo…deixá-los viver? Por exemplo, se forem pessoas muito simpáticas?

- Se forem muito simpáticas e muito prestáveis, e sobretudo muito obedientes, posso pensar nisso. Mas sinceramente, Miranda, eu não acredito que eles se irão importar. Quer dizer, o meu tio matou o meu pai e a minha mãe tentou matar-me a mim, e o meu avô…bem, ele não matou ninguém, não realmente, mas ele arruinou os planos do meu tio de se tornar senhor do mundo todo, e isso deve contar para algo. O que eu quero dizer é, isto é praticamente uma tradição familiar. Portanto relaxa e vai buscar as tuas coisas para podermos ir apanhar a camioneta.

- Sim, Wendy - replicou ela, docilmente, e avançou até ao roupeiro. Em pequena o grande móvel tinha-a assustado, especialmente à noite, até a outra rapariga se ter apercebido disso e perguntado o que se passava. Quando ela lhe confessara, chorosa e temerosa, que a apavorava que monstros se pudessem esconder dentro dele e sair para a atacar, Wendy fungara e lançara-se num discurso aceso sobre como nenhum monstro com um pingo de respeito por si próprio iria ter um roupeiro como covil. Como este falhara em convencê-la, ela pegara num molho de cobertores e dormira no armário durante os três dias seguintes. Miranda sentira-se tocada, e sentia-se ainda, embora parte dela soubesse que Wendy o fizera menos por bondade e mais porque detestava estar errada.

Ela alcançou a sua mochila e retirou os livros da escola de dentro dela, deixando ficar atrás apenas aqueles que acabava de requisitar. Depois, abriu a porta do roupeiro. Pendurado num dos cabides havia algo que tinha vagas similaridades com uma túnica, calças com pernas cilíndricas e um casaco que lhe iria até aos joelhos quando o vestisse. No fundo dele jazia um par de botas que provavelmente eram qualificáveis como arma branca. Miranda pegou nelas e segurou-se para não engolir em seco. Elas iam viajar entre mundos, uma perspectiva que a amedrontava quase tanto como a excitava e deixava um friozinho ambíguo no fundo do seu estômago. Ela sabia o suficiente sobre o lugar para ter curiosidade em visitá-lo, mas também sabia mais do que suficiente para ter consciência de que não se tratava do mais seguro sítio que existia. Em criança, Miranda havia sido regalada com histórias de bestas e bárbaros e poderes malignos. Uma parte dela ainda as temia.

Depois ela recordou o que a sua melhor amiga era, e tudo estava bem. Por algum tempo.


Pela estrada fora, a camioneta seguia. À frente dela estendiam-se quilómetros e quilómetros de estrada em mau estado, rodeada de ambos os lados por campos ainda verdes apesar de Junho estar a meio. A cidade de Velha Delmonte era uma silhueta recortada no horizonte, uma pincelada de pastel contra a serra cinzenta que lhe servia de fundo. Grossas nuvens de chuva estavam a ser sopradas sobre ela e sobre a estrada, e o céu no qual pendiam tinha nas passadas horas adquirido uma tonalidade antracite que prenunciaria tempestade ainda que Elmer não a conseguisse cheirar no ar. Tormentas estivais não eram ocorrência infrequente naquela zona. Velha Delmonte e Nova Delmonte, a sua cidade irmã, encontravam-se situadas numa zona de clima irregular que insistia em sê-lo. O boletim meteorológico falhava consistentemente desde que começara a ser emitido, e se fazia sol de manhã era certo e sabido que choveria granizo à noite. Gente com medidores e impressionantes conhecimentos viera em anos anteriores tentar descobrir a causa do fenómeno, e partira sem encontrar explicação. Entretanto, continuava a nevar em Agosto.

Todas essas coisas eram de pouco ou nenhum interesse para Elmer, que conduzia direito à Velha Delmonte com o rádio no máximo e a cantar os pulmões fora, enquanto os pneus comiam os quilómetros que o separavam do seu destino. De quando em quando, ele atirava um olhar de viés para o único outro passageiro da camioneta além dele. Este dormitara durante todo o percurso até ali, o que ele considerava ser pelo melhor. Era mais tempo para deixar as memórias implantadas assentar e coalescer, e tudo isso, e menos tempo para aturar o resultado da intervenção.

- Segue em frente, segue em frente/A tua escolha está feita - cantou ele, sobrepondo a sua voz ao rádio e exorcizando a irritante sensação de que aquilo era erro crasso - Segue em frente, segue em frente/E desaparece/Segue em frente, segue em frente/Para longe daquiiiiiiiiiiiiii!

O rapaz afirmara que viera preparado. Elmer acreditara nele após ter passado os olhos pela lista que este lhe mostrara, a lista daquilo que era suposto que ele fizesse…depois. Certo era que o que a dita lista continha soava como o produto de uma mente extremamente doente, mas ninguém podia afirmar que ele não fora prevenido quanto ao que era esperado dele. Pela oitava vez desde que começara a cantar, ele desdobrou a folha sobre o tablier e passou os olhos por ela, nem lendo por já saber de coração o que estava escrito nela. Mas a assinatura fora um gesto simpático, ele tinha de conceder isso. Como o próprio Julian Klay dissera ao escrevinhá-la, o mínimo que estava nas suas mãos fazer era assegurar que ajudá-lo não faria dele vítima da fúria do seu pai.

- E eu sei que estava errado/Quando disse que era verdade…- Uma lomba que ele não conseguiu evitar fez o veículo dar um solavanco, e ele saltou no assento. Para seu alívio, o rapaz não acordou ou exibiu quaisquer outros sinais de ter dado por algo. O fragmentado rangeu os dentes para ele.

Era frustrante, honestamente. Quando ele o apagara, a atenção que dera às memórias que haviam desprendido da mente de Julian e fluído para a dele fora nula. Elmer estivera mais focado no facto de que o rebento de alguém que detestava voluntariamente lhe abrira a sua mente, e oh, a oportunidade única que isso não era para modificar o que entendesse, implantar as ideias que lhe apetecessem. Fragmentados não podiam ser mortos. Isso era dogma. Mas um único pensamento, inserido no lugar certo e deixado solidificar, podia destruir uma mente mais eficazmente do que mil e uma facadas. Ele considerara fazê-lo, por um louco instante. O rapaz não o obrigara a prometer que não se serviria da sua vulnerabilidade, afinal de contas. A culpa seria inteiramente dele por não ter previsto que colocar-se nas mãos de alguém com razão para o prejudicar terminaria mal.

E depois o rapaz abrira a boca. “É estranho”, tinha este comentado, enquanto os seus olhos se aclaravam e passavam de negro para cinza, “Pensar que dentro de momentos serei normal. Eu lembro-me de imaginar, quando era mais novo, como seria. Não ter poderes. Carpe diem, gozar a vida sabendo que ela é efémera.” E Elmer olhara-o, realmente olhara-o. Ele vira para lá das feições que eram o decalque das de uma entidade por ele detestada e enchera olhos e mente com aquilo que elas cobriam, e pela primeira vez desde que o encontrara, ele sentira algo pelo rapaz que se aproximara de piedade. Dizer que aquilo havia mudado as coisas seria eufemismo. Num momento, ele estava a colocar traços na sua coluna mental Ele versus Família Klay. No outro ele procurava acalmar o rapaz de joelhos diante dele, impedi-lo de se debater quando este perdeu o fio da meada dos seus pensamentos e gritou em pânico mudo. E enquanto isso, a sua mente trabalhava a dele.

Refazer. Cortar. Regenerar. Transformar. Eliminar. Corte, corte, corte, adição, corte.

Como ia aquele dito humano de certas coisas serem como andar de bicicleta? Nunca esquecidas, mantidas perpetuamente frescas em recantos ocultos da memória, prontas para serem usadas em ocasiões de necessidade. Para ele, esculpir mentes era isso. Quinhentos, seiscentos anos haviam-se passado desde a última vez que lhe fora requisitado que o fizesse, e o fragmentado deu por si a dançar de um passo para o seguinte com toda a naturalidade, como se não tivesse feito mais nada na vida inteira. O rapaz dera-lhe uma série de directrizes. Ele esforçara-se por cumpri-las. Mas isso não o impedira de ser liberal na sua interpretação, pois a sua alma era uma alma de artista, e arte, arte verdadeira, não podia ser restringida por nenhuns grilhões no universo. Cortar. Mudar. Recriar.

Agora, encarando uma vez mais a sua obra adormecida, nem a música em altos berros era capaz de se sobrepor à vozinha que na sua cabeça bradava que ele era um tolo, que aquilo lhe iria criar mais sarilhos do que aqueles que conseguiria resolver em doze vidas. Com um suspiro, Elmer voltou a sua atenção para o outro objecto colocado sobre o tablier. Para a carta, e para o esqueleto vestido de negro que dela sorria um sorriso que não podia ser percebido como nada senão cínico. O rapaz não tivera pejo em entregar-lha quando ele a exigira, com o argumento de que nunca lhe passaria pela cabeça deixar algo com aquela importância nas mãos de um Klay. Destino, este nem parecera ofendido ao ouvir semelhante declaração. Quando ele ironicamente lhe perguntara se não desejava ver-se livre também da sua, Julian limitara-se a sacudir a cabeça e passar o polegar pela lâmina da espada impressa nela. Por um irracional instante, Elmer esperara que ela o fosse cortar.

Morte, pensou ele, virando a carta e escondendo o sorriso da caveira. Morte e mudança.

Nenhuma delas lhe agradava.


Chovia, e não ocorrera a nenhuma das jovens trazer um guarda-chuva.

Wendy cursou a distância que separava o Instituto da paragem de camionetas mais próxima com a segurança daqueles que nada devem ao universo, e chegou ao seu destino sem que um pingo lhe tivesse tocado. A ira dos elementos sabia melhor do que meter-se com ela. O mesmo não se podia dizer em relação a Miranda, de cujo cabelo e roupas corriam rios. Esta desabou sobre o banco da paragem, pousou a sua mochila ao seu lado e agarrou numa mão cheia de caracóis molhados com o intuito de os torcer até secarem. Wendy observou-a com um misto de descrença e diversão antes de regressar ao seu estudo do fim da rua. Ela franziu o nariz. A paragem tresandava à urina de alguém, gente, cão, gato ou híbrido dos três. Irritante, e não algo que se dispunha a suportar por…

- Wendy - disse Miranda, interrompendo as suas meditações olfactivas - podemos passar por Dale?

- Podemos passar pela quantas? - A outra moveu a cabeça num gesto espasmódico quando ela se virou, e Wendy suspirou interiormente. Miranda era tolerável, após excisadas da sua personalidade as características que a irritavam no resto do mundo, mas ela nunca sucedera em fazê-la parar de agir como se a qualquer momento lhe fossem arrancar o braço à dentada. - Não, a sério. O quê?

- Dale - repetiu a jovem, baixando os olhos para os pés. - Eu pensei…visto que aparentemente são estes os nossos planos para as férias de verão, podíamos, não sei…passar por lá? Se pudermos?

- Dale é um fim-do-mundo mais fim-do-mundo que isto aqui. Não há lá nada que valha a pena ver.

- Bem, sim, eu sei isso. Mas gostaria de passar por lá pelo menos uma vez. Saber de onde vim.

- Oh, isso. Compreendo perfeitamente. - Wendy deixou-se cair no banco ao lado dela e deu-lhe um toque reconfortante no ombro. Ela não fora a favor daquilo da amizade, inicialmente. Contudo, uma exploração mais aprofundada do conceito mostrara-lhe que havia algo de útil a ser retirado dele. O suficiente para a convencer de que podia compensar investir tempo nele, e os resultados falavam por si. Miranda não era capaz de a denunciar. Miranda apoiava-a independentemente da situação. Miranda obedecia-lhe sem discutir. Todas essas eram coisas que não teria dificuldade em arrancar-lhe por outros meios, mas ela achava agradável que para variar, incondicional devoção fosse algo que lhe era oferecido, ao invés de ser algo que precisava de forçar. - É claro que podemos ir a Dale se tivermos tempo. Quer dizer, eu não tenho tantos parentes assim, e tu vais ficar sem material de leitura em algum ponto. Depois dessa excitação toda, talvez acabemos ambas a desejar tédio.

- Sim - murmurou Miranda. Wendy decidiu que a sua quota diária de comportamento amigável se encontrava preenchida e baniu a jovem para o plano das insignificâncias. Enquanto Miranda tirava um livro da mochila e o abria, ela fitou o seu rosto reflectido na poça à sua frente. Das suas pouco fundas profundezas, olhos azuis irrepreensivelmente comuns devolveram-lhe a mirada.

Wendy orgulhava-se dos seus olhos. Eles tinham-lhe dado trabalho. Os com que nascera haviam sido chamativos demais, e embora isso não lhe tivesse apresentado problemas dentro do Instituto, onde a sua verdadeira natureza era do conhecimento geral, tinha sido complicado sair do edifício com eles como eram. Portanto, ela arrancara-os. Transmutação corporal nunca fora o seu forte, e haviam sido precisas várias sessões de removê-los e deixá-los crescer novamente até dar com uma cor que fosse do seu agrado, mas eventualmente ela pudera declarar-se satisfeita.

Val Trimade não partilhara essa satisfação, mas o que Val pensava nunca lhe interessara.

- Espero que não te importes. - Miranda fez um gesto vago para a capa do livro na sua mão. Nela encontrava-se retratado um qualquer fulano com uma espada desembainhada, cujos olhos fixavam uma audiência invisível de um modo que a fez querer arrancar-lhos também. Ela deduziu, e essa dedução era mais uma extrapolação feita a partir de padrões comportamentais observados na sua melhor amiga ao longo dos anos, que o seu interior devia conter nada menos que um dragão, uma princesa e um animal falante. Potencialmente um dragão falante. Wendy sabia isso porque se nas mãos de Miranda fosse colocado um manual de um reactor nuclear, a linha de abertura deste se converteria automaticamente em “Era uma vez…”. Por esses e por outros motivos, ela sempre fora cuidadosa quanto a não deixar a rapariga tocar nos seus. - Não sei quando é que combinaste com o teu avô que ele viria buscar-nos, mas ainda falta um quarto de hora para as seis e eu não…

- Shhh! - soprou Wendy. Uma oscilação nas linhas de poder despertara-lhe a atenção. Miranda não dera por nada, pois os olhos humanos dela eram incapazes de as enxergar e a sua mente incapaz de sentir a sua presença. Wendy via-as em toda a sua glória, luminosas e sinuosas e firmes como a mão do Destino. Firmes, até chegar o detentor do dom de as dobrar à sua vontade. Essa era a arte de mágicos e psíquicos. Ao povo de Hoza pertencia a dádiva de as traçar, e ela estava a fazê-lo agora. As suas mãos moveram-se, traço, risco, traço, escrevendo uma interrogativa na matriz do universo e aguardando por uma resposta. Ela não precisou de esperar demasiado.

- Wendy, o que…- Wendy esboçou um gesto impaciente, calando-a, e saiu para a chuva. Olhando para cima, ela viu o um rectângulo de papel surgir e espiralar até ao chão, onde aterrou numa poça e ficou a boiar à superfície da água. A rapariga andou até ela e pescou a carta para fora. Apesar de ter caído onde caíra, não havia uma só gota a deslizar dela quando ela a apertou entre as pontas dos dedos e levantou à altura dos olhos. A sua testa franziu-se e os seus lábios contorceram-se ao de leve. Aquele era um…interessante desenvolvimento, disso não restavam dúvidas. - Wendy?

Wendy rasgou a carta ao meio, e ao comprido, e na diagonal, e deixou os pedaços cair.

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P.S. - Os excertos de música presentes neste capítulo são parte da canção In Between Days, dos The Cure.
Soou-me apropriado. 🤡
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Passagem (Capítulo II) Empty Re: Passagem (Capítulo II)

Mensagem por Moggo Seg Out 01, 2012 5:31 pm

Capítulo II - Quinze Anos Depois (Continuado)
Julian acordou.

Ele dormitara durante a maior parte da viagem, e precisou de uns instantes para se situar quanto a onde estava, porque ali estava e, anormalmente, quem ele, a pessoa que ali estava, era. O rapaz resmungou e esfregou os olhos, ainda meio ensonado, e como se de um texto recém-decorado se tratasse, linhas de factos desfilaram nos seus pensamentos, respondendo à sua última questão. Facto número um, ele era Julian Clay. Facto número dois, o seu pai exilara-o para casa da sua avó porque, facto número três, este e a sua madrasta iam passar o verão a Malibu, e ele, facto número quatro, preferiria cortar fora os olhos com um objecto rombo a servir de bagagem aos pombinhos.

Dali em diante, os factos tornavam-se tão abundantes e emaranhados que era impossível continuar a numerá-los. Julian não insistiu em fazê-lo. Ele estava demasiado ocupado a investigar o que o rodeava. Dentro da camioneta havia bancos que fediam a mofo e vómito, com cantos ratados que deixavam ver a espuma que os enchia, e vidros que não viam água desde que haviam sido colocados. Fora dela, havia quilómetros de estrada rodeada de campos que se estendiam até ao horizonte. Ele e o condutor eram os únicos dentro do veículo. Constatar isso incomodou-o, por algum motivo que era incapaz de explicar. Ele deitou um olhar ao banco ao seu lado e verificou que havia um espaço vazio onde malas deviam estar. Uma ruga formou-se e afundou-se na sua testa.

Malas. Malas, ele trouxera malas. Ele visualizou-as na sua mente, imagens delas caindo no lugar como peças de um jogo de tetris. Uma mochila, uma mala de viagem verde-seco, uma mala mais pequena, um saco. Esse último não lhe pertencia. Esse era de Tim. Certo. Óptimo. Tim. Tim Theron, um tipo que ele conhecera…na realidade, Julian não se recordava assim tão bem de como o conhecera, mas conheciam-se, e Tim acompanhara-o naquela viagem. Porque, razões. Algo que o seu pai lhe havia dito numa ocasião cuja lembrança tinha sabor de sonho, algo sobre segurança nos grandes números, passou a correr pela sua mente e desvaneceu-se, qual cauda de cometa.

- Peço desculpa - Julian saiu do lugar e balançou-se até à parte da frente da camioneta, para junto do condutor. - Eu estava a viajar com alguém. Pode dizer-me o que é feito dele?

- Um metro e oitenta, cabelo para o comprido e ar de quem tem uma doença terminal? – perguntou o homem, de um só fôlego. Ele anuiu. O outro tirou os olhos da estrada e deteve-os nele. - Ele saiu lá em Nova Delmonte. Levou as malas e o resto. Tu ajudaste-o, lembras-te?

- Ajudei? - repetiu Julian, querendo soar incrédulo mas acabando por soar perdido. Ele certamente recordar-se-ia se tivesse feito algo similar, sobretudo algo tão ilógico. Mas lá estava ela, a memória, a encaixar-se no sítio devido com um sonoro “tlac”, e embora ele não fizesse a menor ideia do que o motivara a agir como se lembrava de ter agido, não havia como negar que o fizera. - Huh.

- Chegámos à Velha Delmonte em cinco minutos - continuou o condutor, em tom conversacional. A declaração demorou algum tempo a ser por ele registada. Julian fitou-o, desta vez assumidamente e completamente perdido. - Eu começaria a vestir o casaco, se fosse a ti. Isto vai ser um verão frio.

- Um verão. Frio. - Ele esperava que ouvi-las repetidas fizesse o homem entender a incongruência, mas este limitou-se a encolher os ombros e concentrar-se no volante. - E…Velha Delmonte?

- Aquela que veio antes da Nova Delmonte - replicou o condutor. - Não era para lá que querias ir?

- Era? - Desta vez ele teve de comprimir os lados da cabeça com as pontas dos dedos para extrair dela a confirmação de que de facto afirmara desejar ir à tal Velha Delmonte. O motivo disso, esse era uma incógnita. - Só por acaso, não andei a tomar nada suspeito antes de o dizer. Pois não?

- Define “suspeito”. - Essa não era bem a resposta com que ele estivera a contar.

- Eu…não me estou a sentir muito bem. A minha cabeça não está muito bem.

- Tenta deitar-te, pode ser que melhores. - E essa era uma excelente sugestão. Óptima sugestão. Ou algo. Julian recostou-se no banco, fechou os olhos e tentou concentrar-se em tudo excepto nas picadas insistentes dentro da sua cabeça. Ele avaliou as suas expectativas para as férias que se avizinhavam e descobriu-as nebulosas. Ele pensou na sua avó, que nunca vira e que a ser sincero, julgara ter já há muito tempo passado para um perpétuo estado horizontal. Ele interrogou-se sobre o que Tim estava a fazer naquele momento, mas só muito brevemente, pois a resposta chegou-lhe depressa. O seu melhor amigo - Tim era o seu melhor amigo, certo, confirmado - estaria parado na rua onde ele o deixara, preso naquela espécie de transe em que ele tendia a cair quando ninguém lhe prestava atenção durante um longo espaço de tempo, a pensar em ewoks e elfos e dragões e todas essas coisas de que ele passava a vida a falar e Julian passava a vida a fingir que ouvia.

Ele devia regressar, encontrá-lo. Provavelmente. Não era como se soubesse o que havia na cidade à qual se dirigiam que justificara a sua decisão de a visitar. Isso tinha, pela aparência, sido varrido da sua mente. O rapaz assumiu tratar-se de algo normal. Ele sentia-se tonto. Talvez enjoo fosse a causa da sua disposição estranha. Excepto que ele não enjoava em autocarros, e a sandes de paio que enfardara antes de subir para ele ainda repousava no fundo do seu estômago. Casas apareceram e desapareceram nos vidros, flash, flash, flash, amarelo, bege, rosa-claro, prendendo-se na sua retina por um milésimo de milésimo de segundo e desvanecendo-se. As picadas na sua cabeça converteram-se numa motosserra em funcionamento.

- Tudo bem aí atrás? - chamou o condutor, enquanto ele se dobrava sobre si e vomitava no chão. A poça resultante consistia numa quantidade anormal de água e algo que podia ter sido muesli numa encarnação prévia a boiar nela. Estranho. Ele nem sequer gostava de muesli. Erguendo a cabeça, Julian viu que o condutor o espreitava no espelho retrovisor e estava a fazer caretas em resposta.

- Tem por aí um pano? - conseguiu ele dizer. O seu estômago tornou a protestar. - E não acha que estamos a modos que a ir depressa demais? Por este andar acabámos estampados num poste.

- Nós não vamos acabar estampados num poste.

- Pode ser, mas por uma questão de segurança, e porque eu não quero acabar morto…

- Morto? - Para seu horror, o condutor dobrou-se e espalmou a testa contra o volante, a contorcer-se de riso. Para seu alívio, este corrigiu a sua postura quase de seguida, usando as costas da mão para limpar as lágrimas que se haviam formado nos cantos dos seus olhos. - Morrer. Essa é boa.

- Duvido que vá dizer isso se acabarmos mesmo por ter um acidente fatal. - Por alguma razão, isso apenas fez o outro rir-se mais. Este virou-se para trás, piscou-lhe o olho, e assim por assim, fincou o pé no acelerador. Qual nave espacial a descolar, a camioneta agitou-se e disparou para a frente. Julian não acreditaria que aquela chaleira era capaz de atingir as velocidades a que julgava que ela se movia, e calculá-las deixara-o tão pálido como confrontá-las. - Você…ó diabo, olhe o carro!

Uma travagem assassina impediu-os de bater no carro em questão e de passar a ferro o seu proprietário, plantando-os junto a uma paragem de camionetas. Julian levou uns segundos a retomar um ritmo de respiração normal. Depois ele largou as costas do banco à sua frente, notando com algum embaraço que estivera a agarrá-lo como uma criança agarraria um peluche.

- Onde…- sussurrou, resmungando para consigo que mal conseguisse colocar os dedos em papel e caneta, uma certa companhia de transportes receberia uma reclamação de duas páginas a respeito do tipo de gente que contratavam. –…é que aprendeu a conduzir? Tirou a carta por e-mail, ou algo do género? “Código de estrada” diz-lhe algo, ou é tudo abracadabra para si?

- Hmm, hm - disse o condutor. Ele acabava de retirar um papel dobrado de cima do tablier e estava a colocar uma marca nele, enquanto a sua outra mão pressionava o botão de abrir a porta. Um comentário cínico agitou-se na mente do rapaz e deu início a uma lenta solidificação, antes de ser velozmente trucidado. Ele olhou para fora. Havia duas raparigas paradas à espera de entrar.

A primeira delas - cabelo preto, feições miudinhas, olhos cinzentos - levantou uma mão.

- Olá, avô! - exclamou. O condutor respondeu-lhe com um grunhido, e ela introduziu-se no veículo, arrastando a outra jovem - ar assustado, cabelo com ar de ter acabado de ser electrocutado - para dentro dele também. Havia algo de errado com a voz dela. Julian tinha mais certezas disso do que tivera de qualquer outra coisa na totalidade dos anos que vivera. - Está atrasado por cinco minutos.

- E boa tarde…noite e como tens passado para ti também, minha querida-caríssima-estimada neta.

- Como entender. Esta é a Miranda. - A rapariga que aparentemente era a neta do condutor fez um gesto a indicar a rapariga do cabelo electrocutado. - A minha melhor amiga. Miranda, o meu avô.

O condutor olhou para além da que falara e fixou-se na assim chamada Miranda.

- Ela é humana - disse ele. Esse foi o primeiro indício que Julian teve de que algo bizarro se estava a passar. Humana como, em oposição a um ferro de engomar? - Ela é humana e é a tua melhor amiga. Heh, boa piada. É isso que vocês miúdos lhes chamam hoje em dia? Sempre pensei haver algo de digno e intemporal em “lacaio”, mas e daí, já ninguém liga ao que os velhos têm para dizer.

A camioneta arrancou. Ainda que a razão lhe dissesse o contrário, Julian jurava que ela se levantara do chão. A razão também lhe dizia que uma manobra como a que o veículo executou logo a seguir era uma que nem os melhores pilotos de carros de corrida conseguiriam colocar em prática sem espatifar o veículo, mas este rodopiou e guinou e saiu disparado pela mesma estrada por onde viera. A rapariga chamada Miranda soltou um grito agudo e atirou-se para o chão. A outra continuou de pé, inclinou a cabeça para o lado e olhou-o, estudando-o como se ele fosse uma asquerosa mas fascinante amostra. Julian estava prestes a perguntar-lhe qual o seu problema era, quando um mais importante detalhe lhe chamou a atenção. O condutor levantara-se. Levantara-se.

- Por amor de…meta as mãos no volante antes que nos espatifemos! - Autopromover-se de parte da paisagem a um elemento interactivo dela fez a jovem que não era Miranda estudá-lo ainda mais intensamente, mas Julian estava mais focado em não se transformar em ovos mexidos do que em indagar se ela se esquecera de tomar os seus comprimidos. - Está tudo doido aqui? Conduza!

- Avô, eu julguei que tinha ficado de lhe explicar!

- Explicar o quê?

- Todo o assunto do “nós não morremos”? - Algo na afirmação não lhe soou bem. A parte em que a tresloucada mencionava morte, provavelmente. Julian apercebeu-se de que estava há segundos a fitar com olhos desejosos o martelo preso no tecto e as letras de “Saída de Emergência” no vidro a seu lado. Ele queria nada mais do que chegar à porta e abandonar a camioneta, mas para o fazer, teria primeiro de passar pelo circo que montara tenda à frente dela. Além disso, a perspectiva de se ver obrigado a saltar do veículo enquanto este estava em andamento era longe de agradável. - Eu estou a deduzir que ele não sabe, porque sinceramente, nada mais justifica que esteja a agir como um tão grande idiota. Quer dizer, todos aqui somos imortais, e um acidente de trânsito não é…

- Ngk! - disse Miranda, movendo a cabeça tão depressa que esta se desfocou.

- Certo, corrigindo: todos menos a Miranda. - Ela moveu-se para ele como se corda lhe tivesse sido dada, efusiva e sorridente, e aproximou o seu rosto do dele. Julian não teria desejado ver o sorriso dela de tão perto, ainda menos após este adquirir uma conotação demente. - Primo Tim?

- Não - disse ele. Se a voz da outra fizera algo no seu íntimo encaracolar-se e morrer, o olhar que esta lhe dirigia estava a fazer o contágio espalhar-se. Era como se não o estivesse a ver. Ou antes, como se não estivesse a ver a sua cara, mas a tentar usar os olhos para escavar um orifício na sua cabeça e ver o que esta tinha dentro. Ele começou a recuar. - Definitivamente, absolutamente, não.

- Ah. - Julian sabia que devia ter usado o martelo enquanto ainda ia a tempo. - Desculpa, não fazia ideia de que tinhas passado a usar o teu nome original. Primo Gilberden, então.

- Não. Oh, com toda a certeza que não! - exclamou o condutor, em simultâneo com o “Bwuh? Não!” de Julian. - Isso soava estúpido há quinze anos e a idade não o melhorou. Esse não é o teu primo.

- Ele é um fragmentado.

- Espantosamente, Gwendolyn, eu já tinha dado por isso.

- Wendy - corrigiu aparentemente-Wendy. - Detesto Gwendolyn. É ainda mais estúpido do que Gil-o-que-quer-que-seja até onde nomes vão. Então quem é ele, afinal de contas? Não, não me digam, eu adivinho sozinha. - Havia algo de errado com a sua cabeça. Julian sabia isso no mais vago dos patamares. Onde houvera uma linha na qual factos encaixavam como peças de dominó passara a estar uma pasta porosa que absorvia qualquer pensamento alegadamente racional. Wendy estalou os dedos com algo semelhante a entusiasmo a inundar a sua expressão, e desta vez ela de facto parecia estar a olhar para o lado de fora dele. - Oh, apanhei! Santa crise de meia-idade, tio Serge!

O condutor fez surgir um lenço e cobriu a boca com ele.

- Julian - disse Julian, decidindo que quanto mais depressa se colocasse fim naquela palhaçada, melhor. - Julian Farto-Desta-Esquisitice Klay, desprazer em conhecer-te. Agora podem deixar-me…

- Klay - repetiu ela. Como se o tempo tivesse parado dela, assim era a atmosfera na camioneta. Ele mexeu-se, pouco à vontade, o que o deixou no caminho da mão que lhe acabava de ser estendida. Sem pensar e somente por reflexo, ele aceitou-a. Wendy tinha um aperto forte. Um que dava a entender que ela lhe queria partir os dedos mas, graças à sua sorte e a uma hipotética carência de exercício, não tinha força para tal. - Oh meus deuses, e nem sequer é o meu aniversário!

- Sim. Fantástico. Desculpa por isso. - Ele largou a mão como se esta o queimasse e recuou ainda mais. Algo de muito estranho estava a passar-se ali, começando mas não se limitando ao volante, no qual ninguém tocava há minutos mas que continuava a girar como se mãos o manipulassem, ao facto de estarem a andar a uma velocidade que estoirava com os limites legais e ainda não terem atropelado um peão infeliz no processo e, oh, a chanfrada à sua frente. - Podemos, sabem, parar?!

- Ohhh…- A rapariga aproximou-se, levando-o a recuar até onde o banco o permitia. Os seus olhos encontraram os dela, e a realidade do rapaz deu um salto mortal. Wendy sorriu como uma muito degenerada apresentadora televisiva. - Ele é giro. Será que morre se o largar num vulcão?

- Desculpa? - Talvez aquela não fosse indicada para se colocar, mas ele desafiava qualquer um a pensar em algo melhor com o cérebro petrificado. - Tu picas-te, ou isso é tudo de nascença?

- Gwendolyn - disse o condutor, entre tossidelas - como tu mesma disseste, nós não morremos.

- Nós ainda não descobrimos uma forma de morrer. E eu sou criativa. Holocausto nuclear?

- Eu não acredito que esta conversa está a ser tida à minha frente.

- Se te consola, rapaz, nem eu. Holo…nunca ninguém tentou, mas não recomendo que…

- Verdade, arranjar um para um fim tão banal seria um desperdício. Talvez recorrendo a um buraco negro…avô, você é o especialista. Quais são as consequências de ser atirado para dentro de um?

- Alguém - disse Julian, cujo rosto ainda exibia a mesma expressão de “Mas que demónios?!” que se colara nele há minutos atrás - podia fazer-me o favor de explicar o que no mundo se passa? Há uma convenção de psicóticos na cidade e eu tive a sorte ranhosa de entrar na camioneta oficial?

- Não sei, talvez tentando todos…alguém faz ideia de como instalar um buraco negro num vulcão?

- Tu…tu estás doida. Completamente.

- É tão engraçado que ele o diga como se fosse algo do qual não estou perfeitamente consciente - disse Wendy. O olhar avaliador regressara, mas desta feita, ela encarava-o como se esperasse que a amostra a fosse morder. - Embora seja curioso que ainda não me tenha atacado, sendo ele o que é. Quem é. Eu esperaria no mínimo algum tipo de resistência, ataque mental.

- Na verdade, as minhas ideias estavam a ir mais na linha de “ligar para o hospício, ASAP”. Podem parar um momento para pensar que estão a falar em acabar comigo à minha frente e que eu posso ter alguma coisa a dizer a esse respeito? E deixar de falar de mim como se não estivesse a ouvir?

- Ele tem alguma razão, Gwendolyn - disse o condutor, num tom solidário que vinha tarde e pobre em real sentimento. - É uma falta de consideração discutir isso com o rapaz aqui.

- Wendy - disse esta. - E têm os dois razão. Isso seria rude. E não podemos ter disso.

Um inexplicável “Oh, não novamente!” correu a mente de Julian, e o rapaz caiu redondo.


Em determinados dias, Elmer questionava a sensatez de o ter feito. Reproduzir-se, isto era. Olhando para o incrível número de descendentes seus que haviam escolhido ser tudo o que o seu povo era afirmado ser, não era difícil levar-se a crer que convencer a sua há muito falecida esposa, querepousassenolimbo, a tragar uma certa mistura de ervas teria salvo os mundos de uma enorme quantidade de problemas. E a sua neta, essa era talvez a mais degenerada do lote. Partilhar um espaço com ela bastava para quase - quase - fazer o fragmentado sentir saudades de Serge. Sede de poder fora a sua falha, e não fosse por isso, ele suspeitava que se teriam dado lindamente. A da rapariga à sua frente era ter uma mente retorcida como um saca-rolhas, algo mais difícil de ignorar.

- Podes levantar-te, não há necessidade de ficares deitada no chão - disse ele, dirigindo-se à outra. A tal melhor amiga. Como a sua neta adquirira uma dessas era um mistério, mas a rapariga parecia aterrorizada, o que significava que esta era pelo menos moderadamente inteligente. - Miranda, não é? - Aceno frenético. - Lindo nome, Miranda. - Mais um aceno frenético. - Prazer em conhecer-te.

- Miranda, estão a falar contigo. - Wendy contornou o rapaz desmaiado e deu um toque nas costas da jovem com a ponta do sapato. - Sê educada e responde com palavras em vez de macacadas.

- Prazer…em conhecê-lo. Também. Olá. - Miranda pôs-se de pé, vacilando o tempo todo.

- Hm, hm. E como é que acabaste presa a esse estafermo, querida?

- A Wendy é a minha melhor amiga - respondeu a jovem. Elmer perguntou-se se a sua neta notava que a sua melhor amiga soava como se as vezes que repetira aquilo para se convencer a si própria tivessem feito da resposta um reflexo verbal. - E ela não é um…um…isso.

- É claro que és. É claro que ela não é - apressou-se ele a assegurar, vendo-a engasgada e à beira das lágrimas. Miranda acenou maquinalmente e com visível alívio, e foi sentar-se num dos bancos desocupados. Elmer franziu a testa ao vê-la alcançar a mochila, abri-la e tirar um livro de dentro. A sua surpresa só cresceu quando ela o abriu e colou os olhos a ele, ignorando tudo e todos. - Huh?

- Essa é a Miranda - comentou a sua neta, indicando a rapariga com algo que se ele não soubesse melhor, Elmer poderia ter confundido com afeição. - Mais preocupada com histórias da carochinha do que com socializar. Passando ao que importa…porque nos dois mundos temos aqui um Klay?

- Já estava à espera que fosses tocar nisso. - Na verdade, ele estivera a recear que ela fosse tocar nisso, mas aquela não era a altura indicada para uma discussão de semântica. - Mas antes, tenho uma pergunta para te fazer. Não deste por nada de…peculiar a passar-se nos últimos dias?

- Peculiar. - Wendy olhou pela janela. As casas estavam a desaparecer, substituídas por estrada e erva. A testa dela franziu-se quase imperceptivalmente. - Peculiar como…cartas a cair do céu?

Dito no tom de alguém que sabia com total clareza como aquilo o afectaria.

- Isso seria o género de peculiaridade a que me refiro, sim. Importar-te-ias de me mostrar a tua?

- Oh, eu não a tenho. - Dito no tom de alguém que sabia com total clareza como aquilo o afectaria, mas tentava disfarçá-lo com toda a força. - Livrei-me dela. Era veneno, se estiver interessado.

- Tu…- Não havia palavras. Elas haviam fugido. E julgando pelo sorriso dela, ela sabia-o também.

- Eu consigo ver o que está a pensar. Será que enlouqueci? Será que não quero saber? Será que não tenho ideia das consequências? Será, será, será. - Ela pontuou cada “será” com um estalar de dedos e rodopiou, acabando ajoelhada ao lado do rapaz desmaiado. O sorriso nos lábios dela era um que o teria feito cair inconsciente se ele não o estivesse já. - Penso que ambos sabemos qual a resposta à primeira pergunta. Quanto a querer saber…não, realmente não quero. Consequências e quais elas são, disso eu tenho consciência. Mas elas são irrelevantes. Embora considerando…

Wendy calou-se e sentou-se no banco ao lado de Miranda. Elmer sabia que ela pensava, e ele detestava quando um dos da laia dela pensava. Não um fragmentado, simplesmente um dos da laia dela. Eles funcionavam numa diferente frequência. Onde uma pessoa normal esmagava uma formiga, quem era como Wendy traçava complicados esquemas para atrair a dita com um rasto de açúcar até uma superfície pegajosa, onde esta ficaria colada e sem possibilidade de fuga. Depois, um longo monólogo seria efectuado e vinagre pingado, gota a gota, sobre o insecto indefeso.

- Um jogo irá ser jogado - disse ela, devagar. - E ele quer que eu seja parte dele. Visto que temos o filho de Hector Klay connosco e tendo em conta que você nunca seria competente o suficiente para o raptar, presumo que ele seja mais outra peça e esteja aqui com autorização do papá.

- Parcialmente correcto - concedeu ele. Muito se podia dizer da sua neta, e nada do que se podia dizer podia considerar-se elogioso. Mas ela não era estúpida. - O rapaz agiu por iniciativa própria.

- Interessante. - A sua neta abanou uma mão em frente à cara do rapaz inconsciente e riu por entre lábios fechados quando não recebeu reacção. - Estou correcta em assumir que ele se apagou?

- Eu apaguei-o. Apagar as tuas próprias memórias é impossível, e tu devias saber disso.

- Porque haveria? Não é como se alguma vez o tivesse tentado. Eu gosto das minhas memórias.

- Não imagino porquê. - Elmer tinha memórias dela, também. Hector havia sido caridoso o bastante para lhe permitir visitá-la, talvez pressupondo que sendo ela já um fragmentado e uma assassina, a sua intervenção não podia piorá-la demais. Ele procurara informar-se daquilo que meninas naquele século gostavam. Aparecer de mãos vazias não seria muito apropriado, afinal de contas. Portanto, ele aparecera no Instituto com uma caixa cor-de-rosa contendo uma boneca muito cor-de-rosa, e o encarregado do lugar havia reconfirmado que a sua presença ali era autorizada, e depois ele havia sido guiado até um jardim, e nele havia um banco, e sobre ele uma criança de olhos negros.

E ela tinha pegado na boneca e sorrido para ele, e depois…

- E o Tim? Ele também é parte disto? - exigiu Wendy saber, interrompendo a sua caminhada pelas veredas do passado. Elmer encarou-a, perplexo, e acenou. Ela encolheu os ombros em resposta à questão que ele não colocara. - Logo vi. Pareceu-me o género que coisa que se ajustaria aqui. Que fossem escolhidos os três de nós que existem nesta geração, etecetera, etecetera, etecetera.

- Tecnicamente, ele não é um de nós.

- Ainda - murmurou ela. Elmer deitou-lhe um olhar horrorizado. A insinuação fora clara o suficiente.

- Gwendolyn - disse ele, deliberadamente salientando cada sílaba do nome. - Como teu avô, chefe de família e superior em idade, experiência e poder, vou dizer-te algo que espero ter de dizer uma vez apenas: se aquele rapaz for activado por tua influência directa ou indirecta, espero que te encontres mentalizada de que irei arrancar-te as entranhas pelas narinas, apertar a tua cabeça até ela rebentar como um microondas cheio de alumínio, regar as sobras com cinco diferentes tipos de ácido, queimar as ossadas, aguardar que os teus doentes farrapos de mente se desprendam das cinzas, juntá-los numa bola espiritual, prendê-la numa jarra mágica e atirá-la para o centro do sol.

- Pshhh! É suposto isso soar intimidante? - As mãos de Elmer firmaram-se no volante. Atirá-la pela janela não era um curso de acção aconselhável, mas pelo limbo e pelos poderes, ele queria fazê-lo com tanta intensidade que doía. - Além disso, eu não afirmei que o faria. Apenas que…Miranda?

Tanto a outra rapariga como o fragmentado se sobressaltaram. Este quase havia esquecido que ela continuava ali, de tão silenciosa que se mantivera nos passados minutos. Relutantemente, ela ergueu a cabeça do livro e transferiu a atenção para a sua neta.

- Explica-me aqui uma coisa. Nos livros que tu lês, há alguma hipótese de o órfão com misteriosas origens, e que barrando alguma falta de habilidades sociais é absolutamente comum em todos os aspectos, não ir acabar por ter uma espécie de poder espantoso e um destino super-especial?

- Uh…não? - tentou Miranda. Wendy sorriu um sorriso cheio de dentes.

- Está a ver? - disse ela, triunfante. Elmer não estava a ver coisa alguma.

- O que é que uma história tem a ver com realidade e com o jogo?

- O facto de ter de fazer essa pergunta, avô, já indica que eu conheço as regras melhor que você.

- Eu nem irei discutir isso. Seja como for, deixei o teu primo em Nova Delmonte. - Elmer nunca fora de usar sorrisos malévolos. Sorrisos malévolos eram um utensílio de palermas ansiosos por causar uma impressão, e curiosamente, algo que assentava na perfeição em Wendy. Mas a ocasião, ela exigia um! - Parece que terás de adiar os teus planos de viagem até dares com ele. Isto se ainda o tencionas levar contigo, bem entendido.

- Eu não sonharia partir sem ele - assegurou Wendy. Ela deitou um olhar pela janela, depois um ao rapaz no chão. - E dele, o que se pretende que seja feito com ele? Porque a última coisa que quero é ter o Klay sénior a aparecer e arruinar as minhas férias por causa das suas regras estúpidas.

- Claro. Mas é aí que está o brilhantismo da coisa toda, sabes? Um jogo começou. O que acontece nele diz respeito aos seus intervenientes, e aqueles que o jogaram antes…entende isto, pois esta é a parte importante…aqueles que o jogaram antes estão proibidos de intervir. Isso é dogma.

- Trocado por miúdos, posso fazer o que quiser com ele e a única defesa que ele tem é ele próprio. Eu gosto disso. Gosto muito disso. - Ela agarrou o rapaz pela gola da camisa e puxou-o para cima, largando-o de seguida em cima de um dos bancos para a frente. - E não acha que estamos a demorar demasiado a sair da sombra da montanha?

- Fala por ti. - Ele carregou a fundo no pedal. Mentalmente, e isso era o suficiente. A camioneta deu um salto e triplicou a sua velocidade. Pelo espelho retrovisor, Elmer viu o rosto de Miranda adquirir a cor de leite coalhado. Como a jovem ainda tinha medo para dedicar a coisas triviais como rapidez quando tivera a sua neta por companhia a vida inteira era algo para lá da sua compreensão. Ele tentou recordar qual a esperança média de vida de um mortal humano era. Sessenta, oitenta, algo à roda disso? Qualquer que fosse, ele quase conseguia ver os números daquela ali reduzir onde ela estava sentada, com cada instante passava no mesmo espaço que Wendy. - Ainda não consigo acreditar que a tens como melhor amiga, também. Honestamente, como é que isso aconteceu?

- Bem, nós crescemos juntas, e começamos…- Elmer teve de se segurar para não revirar os olhos.

- Eu estava a falar com ela, não contigo. - Miranda encolheu-se no assento e cravou as unhas nas bordas do banco com tanta força que os seus dedos rasgaram o tecido e arrancaram espuma. O fragmentado absteve-se de mencionar que levara o veículo emprestado e tencionava devolvê-lo em condições. Criticá-la, sendo ela o feixe de nervos que era, seria cruel. - Já estás mais capaz de responder? Vamos lá, rapariga, eu não mordo. Conta-me como começou essa formidável amizade.
- Bem, nós crescemos juntas, e começámos…nós começámos…eu…

Elmer deitou um olhar ao rosto lívido e lábios trémulos dela, e desistiu.

- Creio que podemos parar aqui - disse ele. A rapariga mal conseguiu disfarçar o seu alívio, Wendy a sua impaciência. - Estamos afastados o suficiente para o túnel não se dever desintegrar.

Ele imobilizou a camioneta na beira da estrada e desligou os faróis com um pensamento. O sol tinha já desaparecido atrás da montanha, e nuvens gordas e escuras amontoavam-se no céu. A sua neta levantou-se, possuída por uma energia maníaca, agarrou na mala que trouxera consigo e atirou-a a Miranda. De seguida, debruçou-se sobre o rapaz e tocou-lhe na testa. Elmer adivinhou o que ela fazia e segurou um suspiro. Tudo aquilo era necessário. Julian teria concordado com esse juízo caso estivesse consciente e consciente de quem era. Mas Wendy desconhecia isso.

- Rapariga - disse, dirigindo-se a Miranda e assustando-a. De novo. - Porque não vais saindo?

Miranda lançou um olhar às costas de Wendy, como que silenciosamente pedindo para ser autorizada a aceitar a sugestão. Esta deu de ombros, sem se virar e continuando focada no rosto do rapaz. Os seus dedos estavam agora a descrever gestos mais complicados. Elmer reconheceu, e as recordações que acompanharam o reconhecimento encheram-no de nostalgia, a manipulação de linhas e memórias que ela estava a efectuar. Dobramento em vez de quebra, transformação em vez de desintegração. Até onde violações da psique iam, aquela era surpreendentemente gentil.

- Feito - disse Wendy, endireitando-se. Com um estalar de dedos, ela fê-lo levantar-se também. Os olhos dele continuaram fechados, e mesmo naquele estado sonâmbulo ele não parecia muito feliz.

- Nós precisámos de falar. Sobre a tua amiga ali.

- A Miranda? O que tem a Miranda?

- Para começar pelo óbvio, a rapariga é humana e mortal, e completamente desprovida de poderes especiais aos quais possas dar uso. Porque nos dois mundos a estás a arrastar para isto contigo?

- Porque ela é a minha melhor amiga? - O mais aterrador era o quão sincera ela soava. - Há coisas mais importantes do que utilidade, avô. Como estar-se vivo, e segredos fundamentais do universo, e ter poder sobre o destino de todas as raças do mundo. E amizade. Eu não podia deixá-la atrás.

- Se tu tivesses ainda que só a mais vaga noção do que amizade significa, tê-lo-ias feito.

- Sabe, olhando para o seu historial de amizades…você é a última pessoa com direito a criticar-me.

- Ah - retorquiu Elmer, levantando um dedo. Ele virou-se. Na sua face não havia nem uma nuance de expressão que revelasse o que sentia. Em comparação com a fachada desprendida que a outra lhe apresentava, a sua era um vácuo em que emoção caía, se inflamava como a cabeça de um fósforo e como a cabeça de um fósforo se extinguia. - Imaginei que irias levantar esse tema. Sabes porquê? Porque pareces supremamente indiferente ao facto de que se o quisesse, eu castigaria a insolência que tens usado desde que colocaste pé aqui dentro com uma dose de voar-pelo-vidro.

- Outra vez a tentar assustar-me, apesar de já se encontrar provado que isso não funciona?

- Eu não teria tanta certeza disso. - Ele notou com satisfação que ela soara assustada. Assustada como alguém desabituado a medo e incerto de como proceder para o mascarar. - E aproveitando o momento, aquilo que eu disse há pouco acerca do teu primo? Aplica-se a ela também.

- Oh, eu duvido muito que vá conseguir activá-la mesmo que tente.

- E eu penso que sabes perfeitamente que não me estou a referir a isso. Quanto ao rapaz…

- O quê, ele também está fora dos limites? - Elmer estava muito tentado a responder que sim, mas conteve-se. Ele deitou ao rapaz um olhar que esperava não parecer ser de comiseração. - Porque eu tenho planos para ele. Grandes planos, dos quais não pretendo desistir. Podemos ir andando?

Ele visualizou em pensamentos a folha de papel no tablier e decidiu não discutir.
Miranda esperava-os no exterior do veículo, com a expressão doente de medo que o fragmentado se estava a habituar a ver nela. Ele não tentou meter conversa desta vez, limitando-se a afastar-se para o lado e dar espaço à sua neta para sair. O rapaz cambaleou atrás dela como que puxado por uma corda invisível, ainda de olhos fechados e com a cabeça a oscilar molemente de um lado para o outro. Ele fez sinal para que o seguissem para dentro do campo paralelo à estrada.

- Então - disse, detendo-se no que lhe pareceu um ponto tão bom como qualquer outro para iniciar a construção do túnel - antes de começarmos, há mais algumas coisas que gostaria de clarificar. A primeira deverá ser óbvia: nenhuma de vocês encontra-se autorizada a passar para baixo. Caso se vejam em trabalhos com o grupo do pai desse aí, deixem o meu nome fora do assunto. A segunda é, não lhes dêem justificações para ir atrás de vocês. Mantenham o nariz fora de problemas e…

- A nossa intenção não era criar confusão, só fazer algo divertido com as férias. Certo, Miranda?

Miranda anuiu de modo muito pouco convincente.

- Mas agora que fui arrastada para tudo isto, não me parece que manter um perfil baixo ainda seja uma opção. - Wendy tocou no queixo e esboçou um sorriso afectado. - Qual é ele, desta vez?

- Ele o quê?

- O objectivo. Presumo que matar-nos uns aos outros se encontre fora da mesa, portanto…unir-nos contra uma qualquer ameaça de proporções titânicas? Fim dos mundos como os conhecemos?

- Estou tão às escuras como tu nesse departamento - admitiu ele. - Não é como se Ela fosse minha amiga do peito, ou faça questão de me manter a par dos seus desígnios.

- Pena. - Ela virou-se para trás, e os seus olhos detiveram-se em Julian por uns segundos mais do que o estritamente necessário, educado e seguro. - Mas irei descobri-lo em breve, seja como for. E já agora, quando é que tenciona começar a abrir o túnel? Porque não temos a noite toda.

- Assim que disseres a palavra mágica.

- Avô, está a ficar senil, ou algo assim? Você devia saber que magia e o nosso poder não se dão.

Nos velhos tempos, insolência daquele calibre seria castigada com uma marreta aplicada na cabeça. Contudo, aquela era uma nova era, um novo mundo. O seu aprisionamento impedira-o de evoluir com ele, mas de algum modo, ele acabara por interiorizar que as coisas que faziam um bom homem lá em baixo, há cinco séculos idos, não eram as mesmas que eram vistas como positivas ou sequer aceitáveis ali e naquele momento. Assim, Elmer forçou-se a não estrangular a rapariga à sua frente e revirou o bolso direito. Dele, tirou uma esfera-de-salto que depositou na palma dela.

- Deduzo que uma jovem inteligente como tu saiba operá-la. - Ela revirou os olhos e fechou a mão.

- E eu deduzo que uma pessoa responsável como avô não se tenha esquecido do sangue.

- Não. - O fragmentado retirou uma garrafinha minúscula do outro bolso e levantou-a à altura dos olhos. Quando Wendy a tentou arrebatar, ele levantou-a fora do seu alcance. - Diz “por favor”.

- Por favor - respondeu ela, automaticamente.

- Bom começo. Agora, tenta repetir isso num tom que não usarias com a tua amiguinha.

- Por favor? - Ele suspirou e entregou-lhe a garrafinha. Sendo humildade e educação conceitos que lhe escapavam, parecia que resignação frustrada era o melhor que podia esperar da sua neta.

- Relembra-a deste momento de vez em quando, sim? Talvez lhe faça bem - disse, virando-se para Miranda. Esta emitiu um guincho abafado, o que era excelente, no que lhe dizia respeito. Nada de negativo podia advir de mostrar à rapariga que a sua suposta melhor amiga não era o começo e o fim de toda a autoridade. - Devias aprender a reconhecer o teu lugar, Gwendolyn. De outro modo, o mundo não terá escrúpulos nenhuns em ensinar-to mais duramente do que eu.

- Wendy - corrigiu ela, em tom cortante. - Podia agora, por favor, fazer-me o favor de abrir o túnel?

- Evidentemente. - Ele gesticulou a Miranda para que se afastasse do caminho, o que esta fez com ainda mais um guincho. Aquela rapariga começava a preocupá-lo. De seguida, ele fechou os olhos. Quando os tornou a abrir, o mundo era um caos de linhas brilhantes que se cruzavam e uniam e se entrecruzavam e dançavam umas em redor das outras. Como estar preso dentro de um novelo que havia sido fundido com uma infinidade de outros novelos, e ao mesmo tempo completamente sem vínculo com essa comparação, assim era aquilo. Terceira visão. Aquela que era o domínio dos que haviam nascido sob o poder do Pai-Túnel, ou visto o limbo e deixado o limbo devolver-lhes o olhar.

Nunca deixara de o espantar que existissem fragmentados para os quais a criação de túneis não era como uma segunda natureza. Quando acordara, sem memória de si próprio e erudição que a acompanhasse, ele soubera descobrir pontos no espaço e manipulá-los antes mesmo de saber o que era. Que a sua técnica havia melhorado no milénio que entretanto passara era um facto. Mas até o contrário lhe ter sido dito, Elmer genuinamente acreditara que todos os da sua raça viam o mundo como uma gigantesca teia de prata e azul e cores inexistentes. Ele recordava-se da alegria que sentira quando, depois de se sentar no banco e deixar alguns desconfortáveis minutos passar enquanto a sua neta examinava a boneca, esta se virara para ele e perguntara se ele também era capaz de ver os fios que ligavam a realidade. Era pena que essa alegria tivesse sido tão efémera.

- Pronto - disse Elmer, tornando a fechar os olhos e abrindo-os de novo. À sua frente pairava um pedaço de vácuo, uma queimadura de cigarro no tecido do universo, um orifício no qual a vastidão negra do limbo havia sido, ainda que apenas temporariamente, aprisionado. Pelo canto do olho, ele viu que Wendy observava o seu trabalho com exagerado interesse. As suas intenções eram óbvias o suficiente. - Não te recomendaria tentar imitar-me. Este processo é demasiado evoluído para…

- Localizar um nó de linhas de poder no espaço pretendido, doravante referido como ponto B, criar um vórtice que abra um vácuo entre B e o sítio de origem, doravante referido como A, manipular as linhas afastadas de modo a que A e B sejam unidos, forçá-las a contrair-se de modo a encurtar a distância a ser percorrida, cauterizar linhas que tenham sido rompidas no processo e estancar com poder cru os espaços entre elas de modo a impedir o limbo de derramar para dentro deste mundo, fazer as verificações de segurança necessárias e abrir portais em A e B. Falhei algum passo?

O fragmentado abriu a boca, pensou melhor e tornou a fechá-la.

- Certo. Correcto, Wendy - disse ele, quando minutos se passaram sem que o sorriso presumido da jovem se desfizesse. Se algum veneno pingara dos seus lábios ao pronunciar o nome, ela não dera pelo facto. E porque ele não podia resistir a comentá-lo…- É impossível que tenhas deduzido tudo isso neste momento, através de nada mais que observação.

- Não seja ridículo. Não só não é impossível como foi dolorosamente simples. - A rapariga deu um passo em frente, parando diante da boca do túnel e chamando a sua amiga a si com um imperioso gesto de mão. Esta fez um som como um gato com a cauda presa num cortador de relva. - Vamos andando, Miranda? Tenho a certeza de que o meu avô tem mais que fazer além de aturar-nos.

- Nós…temos…de entrar ali dentro?

- Sim. Sim, nós temos. Anda daí. - Ela agarrou na mão da outra jovem, não fazendo caso da sua expressão torturada, e arrastou-a consigo enquanto lhe acenava com a outra. - Até mais ver, ‘vô!

- Um momento! - Elmer ergueu um dedo e apontou para trás de si, lamentando precisar de o fazer. Os olhos de Wendy seguiram o movimento e estreitaram-se. - Não te estás a esquecer de algo?

- Oh, duh! - Ela bateu na própria testa, deu um pequeno empurrão a Miranda e voltou para onde Julian havia sido deixado, a fitar o espaço como se este contivesse fascinantes segredos. - É claro que eu não o iria deixar atrás. Quer dizer, isso seria um desperdício. Tu! Jules, ou o coiso. Marcha!

O rapaz falhou por completo em registar a existência dela. Ela soltou um suspiro frustrado.

- Deuses, como eu detesto hipnose! - resmungou, estalando os dedos em frente à cara dele. Julian reagiu enfim, embora o seu olhar continuasse cheio de neblina, e arrastou-se atrás dela. Wendy fez uma careta insatisfeita e estalou-os um par de vezes mais. Ele arrastou-se mais depressa. - E isso é mesmo tudo, acho. Beijos, abraços, nós mandaremos um postal quando chegarmos. Ciao!

O trio desapareceu no túnel. Miranda dirigiu-lhe um aceno vacilante antes de ser engolida pela escuridão. Ou talvez se tratasse de um último, desesperado pedido de ajuda. Era difícil dizer.

Elmer esperou, contando os minutos na sua mente. Depois, endireitou-se e puxou as linhas de volta para si como um pescador a recolher uma rede, forçando o portal a contrair-se sobre si enquanto os seus limites eram desmantelados, até restar somente um solitário ponto negro. Ele abriu a mão, virou a palma para cima e capturou-o entre os dedos. O ponto pulsou na sua palma como se estivesse vivo, para de seguida mergulhar nela e lhe correr através do braço, alongando-se e percorrendo o seu corpo em linhas que se cruzavam e sobrepunham e ardiam com a força que se agitava por detrás daquilo que os sem visão classificavam como mundano. Reciclando-se.

Elmer sentou-se onde o túnel estivera, cruzou as pernas em posição de lótus e aguardou.


Uma mão pálida virou uma carta e virou uma carta e virou uma carta e virou uma carta. Veneno. As serviçais. Morte e a espada branca. Quatro de seis, e três de seis por jogar. A mão pálida pegou numa carta e viu linhas de corte dividi-la. Meio. Comprido. Diagonal. Depois, pedaços, e eles eram seis também.

Na penumbra, lábios formaram um sorriso.
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