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Coração de Relógio

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Moggo
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Coração de Relógio  Empty Coração de Relógio

Mensagem por Moggo Sex maio 25, 2012 2:59 pm

Coração de Relógio  Capacdrcopy


Coração de Relógio  PemmahanoverCoração de Relógio  PameliehanoverfinnCoração de Relógio  Pberthaeluce
___________~ Emma ~ ______ ~ Amelie ~ ________~ Bertha ~
Coração de Relógio  PdorienmaikenCoração de Relógio  Phomemdasluvas
_____________________~ Dorien ~ ____~ ... ~

- Uma história de gente e máquinas e as diferenças entre os dois. -

2532. Século e meio depois do banimento da humanidade para a lua, uma das figuras de proa da revolução por ele responsável é encontrada assassinada.

Emma Hanover ignora isso. Os seus problemas já são miríade. Quando Amelie, a prima que ela não sabia ter, anuncia pretender visitá-la, Emma prevê - acertadamente - que mais problemas se irão acrescentar àqueles que já tem. Amelie é desastrada. Amelie fala demais. Amelie intromete-se em assuntos que não lhe dizem respeito. Amelie é demasiado bonita, demasiado alegre e demasiado imprevisível para que tê-la por perto seja algo além de um martírio.

E Amelie esconde um segredo. Um segredo que ela própria desconhece. Um segredo que caso caia nas mãos erradas, terminará o mundo. E inimigos mobilizam-se, e o tempo está a contar…


INTRO


Sexta-feira, 19 de Fevereiro, 2365

Primeiro veio o Aquecimento, e fogos e inundações varreram o mundo.

O mundo que o substituiu, o mundo que aqueles que vierem depois de mim recordarão, foi um mundo construído a partir de escombros de civilizações. Das águas nos erguemos, através das chamas passámos, e ao sermos forçados a confrontar os resultados dos nossos erros, jurámos aprender. Não mais seria o clima o nosso brinquedo. Não mais depositaríamos a nossa fé nos recursos finitos cujo uso quase nos havia custado a Terra uma vez. A água da qual por pouco nos tínhamos salvado converteu-se no motor da Terra Nova, e se por ela optar como recurso energético nos atirou para trás na marcha do progresso, consolámo-nos com a noção de nunca irmos tornar a defrontar uma natureza em revolta. Nós reconstruímos, e nós vingámos.

E após iniciada a Reconstrução, de novo pecámos por soberba, embora de diferente modo. Milénios de crença em ser a nossa espécie o píncaro da cadeia evolutiva cegaram-nos para o perigo. Quando retornámos às ruínas das cidades que havíamos sido forçados a deixar, eles estavam lá, a caminhar entre edifícios desmoronados e a desempenhar as tarefas para as quais tinham sido programados, como se o Aquecimento não tivesse tido lugar. Máquinas, mas máquinas às quais no tempo precedente ao cataclismo haviam sido dados corpos e rostos.

Na Reconstrução, elas foram a graça salvadora cujas mãos levantaram as cidades que a nova humanidade, a humanidade iluminada, viria a habitar. Elas quebraram, e nós refizemo-las de lata e circuitos e imbuímo-las de um simulacro de vida. Nós escalámos para materiais de maior sofisticação - fibra, titânio, e finalmente, carne. Pois é nos inato que tentemos superar os nossos predecessores, e é nos inato que as consequências dos nossos actos apenas adquiram importância quando com elas somos confrontados. Nós criámo-los de carne, carne movida pelas mesmas engrenagens que antes haviam movido lata, mas carne, carne viva. Máquinas semelhantes a nós e constituídas como nós, mas incapazes de pensar como nós, e porque de pensamento não eram capazes, usá-las como nos agradasse era acertado. E tudo estava bem.

Em 2289, Kenji Masaru apresentou o primeiro modelo do projecto VIDA. Robôs ou andróides, eram esses os termos que na altura se empregavam para qualificar metal capaz de emular humanidade. Masaru desafiou essa definição ao conceber um engenho - Relógio foi o nome que recebeu - que tornou obsoletas as redes de circuitos que até então se tinham como imprescindíveis no gerar e controlar dos simulacros de emoção evidenciados pelas máquinas. Subitamente tornou-se possível construir um servo orgânico em tudo excepto no dispositivo no seu peito. Mais, entre as propriedades dos Relógios contava-se a de armazenar recordações, e tendo adquirido algo similar a uma memória, as máquinas principiaram a adquirir algo similar a uma personalidade. Assim como nós o havíamos imbuído de comandos, elas imbuíram o metal dentro delas de identidade. Crenças. Esperanças. Sonhos. Desejos. Amor e ódio. Emoção.

E a humanidade começou a preocupar-se, mas não demasiado. Não o suficiente.

Trinta anos após a introdução de servos de carne, osso e Relógio, uma criança nasceu em Perant, Inglaterra-antes-da-Reconstrução. Produtos da união de dois com Relógio eram tema pouco discutido na época, por nenhum ter sobrevivido mais que algumas horas após o seu nascimento. A criança de Perant, cuidadosamente monitorizada a partir do momento em que a sua concepção se tornou pública, foi causa de alvoroço quando contra todas as expectativas, uma experiência destinada a prolongar-lhe a vida através da inserção de um Relógio próprio teve sucesso. O procedimento tornou-se padrão para crianças nascidas em tais circunstâncias, e como os seus pais, elas foram colocadas ao serviço da humanidade que lhes permitira existir.

Em 2342, a criança de Perant, já não uma criança mas um pesadelo tornado engenho, atreveu-se a discordar. Maraura, disse ela chamar-se, por ser esse o nome inscrito nos ecos do código do seu Relógio, nas coordenadas que a moviam e na identidade que para si forjara. E a Terceira Guerra Mundial, a guerra dos Vinte e Dois Anos, teve início. Na nossa demanda por maior quantidade de mão-de-obra, falhámos em ver que as máquinas nos superavam em tal quantidade que bastaria um incentivo para as transformar em ameaça. E incentivo receberam, pois em segredo havia-se montado um Relógio diferente, e todos os Relógios eram escravos do seu hospedeiro, e todos os Relógios responderam ao seu chamamento quando a criança, a mulher, a máquina e senhora-de-todas-as-vontades que para si o reclamara, gritou revolta.

“Este já não é o vosso mundo”, declarou ela, e um milhar, um milhão, milhões de vozes secundaram-na, gritando “Nós sentimos, nós existimos, nós somos. O vosso tempo passou.” E armas foram levantadas e não mais baixadas até 7 de Maio do passado ano, o dia em que pela segunda vez no espaço de século e meio, a nossa raça enfrentou uma amarga realidade. Nós-a-Humanidade perdemos. As máquinas expulsaram-nos do planeta sobre cujo solo nascemos, e seguindo um instinto tão velho quanto a nossa espécie, nós virámos os olhos para o alto. Não em súplica às forças do cosmo. Não em prece a uma qualquer entidade divina. Desesperados, nós olhámos para o círculo de prata no céu e vimos nele um sítio para transformar em lar.

Embora apenas temporariamente.

Jorjen R. Bronislav,
Primeiro Intendente Geral
da República Lunar


Última edição por Moggo em Qui Nov 29, 2012 10:47 am, editado 28 vez(es)
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Coração de Relógio  Empty Capítulo I

Mensagem por Moggo Sex maio 25, 2012 3:19 pm

Capítulo I - A Chegada

Havia silêncio na oficina. Um silêncio que era tanto mais profundo por denotar, em vez de uma simples ausência de barulho, a ausência do barulho que enchera o espaço e ressoara pelas paredes desde há dias até há momentos atrás, altura em que todos os relógios haviam parado. Todos os relógios era quantificação que uma vez passada a qualificação, incluía relógios de parede, relógios de pêndulo, relógios de pulso espalhados às dezenas sobre secretárias e prateleiras, relógios de cuco e cronómetros, ampulhetas de várias cores e tamanhos, clepsidras, e até um gigantesco relógio de sol.

O relógio de sol ocupava o centro do espaço. Ali dentro, ele era de pouca utilidade. A divisão era mal iluminada e sem janelas, e a escotilha envidraçada no tecto não fornecera suficiente luz para que funcionasse nem no tempo em que não se encontrava coberta de musgo e verdete; luz solar teria de estar munida de facas para passar por ela.

Inserido no chão ao lado do relógio de sol havia um aro ao qual se encontrava agarrada uma mão. Puxando por ele, um alçapão abria-se para revelar a oficina sob a oficina. Esta não se parecia tanto com o local de trabalho de um relojoeiro ou morada de um lunático com uma peculiar obsessão. Ela era a oficina do Relojoeiro, e a maiúscula honorária era a diferença entre quem remexia no interior de relógios de pessoas e quem concebia Relógios para colocar no interior de pessoas. Vida, e os engenhos que a sustentavam, eram nela concebidos, nos tubos translúcidos e nas mesas de trabalho que ocupavam apenas um infinitésimo da sua real dimensão. Debaixo do alçapão existia um mundo.

Na oficina que era uma fachada para a verdadeira havia, para além do silêncio, um corpo.

Uma mão enluvada bateu na porta. A primeira pancada que deu foi suave. A segunda mais insistente. A terceira foi tão forte que empurrou a porta, que estivera encostada o tempo inteiro, e a deixou escancarada. O bico de um sapato ratado passou para dentro e foi esfregado ao encontro da carpete. O seu dono teria respirado fundo, se respirar com qualquer tipo de profundidade não fosse obrigá-lo a aspirar uma golfada do fedor que pairava no interior da divisão – óleo e suor azedo e pele apodrecida e morte. Por um feliz acaso, respirar não era uma necessidade urgente para quem acabava de entrar.

Ele era um construído, e construído era o termo politicamente correcto para alguém que era metal em mais que o Relógio no seu peito. O homem das luvas não aparentava ser a máquina que era, pois pele sintética e implantes capilares eram maravilhosas invenções. Só o seu rosto o traía, e este fazia-o somente quando a situação exigia uma expressão demasiado extravagante para a sua estreita tira de músculos faciais. Em todos os outros aspectos ele parecia normal, e parecê-lo-ia ainda que construídos não existissem em quantidade suficiente para que sê-lo fosse só uma forma diferente de normalidade.

O homem das luvas parou e avaliou o que o rodeava. Os seus olhos caíram no óbvio.

- Hanover - disse, devagar, incredulamente. Ele deu um passo para onde o Relojoeiro se encontrava prostrado. Seria difícil obter resposta dele sem recorrer a um médium e tábua ouija, mas o homem das luvas ajoelhou-se ao lado do corpo e falou-lhe como se esperasse que uma lhe fosse dada. - Hanover. Harold. Merda e Criadores e ponteiros quebrados, acorda! - Ele deu um safanão ao corpo, virando-o.

O buraco vazio no peito do Relojoeiro encheu-lhe a vista e a mente.


Em dois mil quinhentos e trinta e dois, o mundo era Astarte e as Américas, vazio nos pólos e uma fornalha desolada sob o Equador. A colónia de Fron repousava abaixo, mas não muito abaixo, de onde outrora se encontrara o extenso e entretanto derretido panorama árctico. Em tempos uma zona perpetuamente invernal, o Aquecimento convertera-a numa região de temperaturas só ligeiramente menos cálidas que as do continente. O interior da colónia era um bocado de rocha escavado pelo degelo de glaciares e enegrecido por resíduos de vulcanismo. No seu litoral acumulavam-se fiordes e colunas basálticas, sobre os quais se empinavam cidades que pareciam querer arrastar-se tão para perto do mar quanto a terra firme lhes permitia. Por direito, metade delas deveria ter desabado rocha abaixo e desaparecido nas águas, mas de pé elas estavam, e de pé se manteriam nos séculos por vir.

Cráduma estava enraizada onde a costa encontrava o mar, espremida entre um promontório e vários penedos, à sombra de uma falésia da qual uma barragem se prolongava e entrava na água, fechando a enseada. Cráduma era meio cento de quilómetros quadrados ocupados por casas que protuberavam, como cogumelos de carvão, de cada área de solo apta a ser utilizada como local de construção. A partir do continente, era possível aceder-lhe por barco e dirigível. Para visitantes das cidades vizinhas, existiam as escadas que os Criadores haviam escavado na falésia.

O último barco vindo de para lá do Estreito a chegar a Cráduma fora o Carlada, um cargueiro de depois da Terceira Guerra, com um casco ao qual a cobertura anti incrustante dera uma tonalidade acobreada, e uma chaminé de onde jorrava fumo branco. Ele encontrava-se sentado no cais como se este lhe pertencesse, ocupando três quintos da gare com o seu volume. Normalmente eram apenas contentores o que transportava. Os poucos visitantes do continente que a cidade recebia preferiam a comodidade e rapidez do dirigível a três dias de viagem por mar.

Que mais de três passageiros se encontrassem a ser despejados sobre a doca era portanto uma anomalia. Emma Hanover não apreciava anomalias. Ela era veloz a habituar-se-lhes e a adaptar-se-lhes, mas ressentia-as por interferirem com as suas pretensões de impor ordem no dia-a-dia.

A personalidade de Emma era difícil de descrever, pela mesma razão de ser difícil descrever a chama de uma vela apagada. Descrevê-la a nível de físico era ligeiramente mais simples mas menos relevante. Se lhe fosse requisitado que o fizesse, ela franziria uma sobrancelha, levantaria a outra, e replicaria que parecesse o que parecesse, ela esperava que “apresentável” se encontrasse entre os adjectivos aplicáveis. Depois, afastar-se-ia o mais rápido e delicadamente possível. Quando esta era viva, a sua mãe dissera-lhe que aqueles que colocavam questões estúpidas deviam ser tratados com a paciência com que se trataria um doente. Emma levava o perigo de contágio muito a sério.

Para a maioria daqueles que se reuniam no pontão, o Carlada trazia contentores enviados por parentes no continente, demasiado pesados para ser viável o seu transporte por ar. Para ela, o barco trazia uma parente em si. Amelie. Amelie Marguerite Scarlett Aston Hanover-Finn. Emma desaprovava da vinda desta quase tanto como desaprovava o nome; era inadequado ter mais nomes do meio que Sua Majestade Maud, e inadequação era imperdoável. Que Amelie tivesse resolvido vir naquilo que para ela seria uma muito movimentada semana era o tufo de nata no topo do bolo. Com o casamento marcado para a quarta seguinte, a visita da rapariga seria ainda outro congestionamento de horário a acrescentar à impressionante lista deles que já possuía.

Até há dias atrás, Emma estivera abençoadamente ignorante de que em dado ponto da sua aberrantemente longa existência, o seu tio se reproduzira. Depois chegara a tarde em que regressara do trabalho na fábrica, e ela abrira a porta para encontrar um cartão no tapete da entrada. Um cartão cheio de caligrafia floreada e amabilidades açucaradas, e tão educado em tom que não encontrara um meio digno de recusar o que nele era pedido. Ela considerara ignorar que o recebera, mas Bertha, a sua caseira e ocasional confidente, apercebera-se das suas intenções e dissuadira-a.

Bertha conhecia formas de dissuadir que Emma estava quase certa de serem ilegais.

Portanto, porque ela possuía na sua folha de pagamento um osso velho extremamente duro de roer, a jovem respondera à sua recém-descoberta prima que esta estava autorizada a apresentar-se à sua porta e revolver-lhe a vida. Amelie não lhe comunicara ser essa a sua intenção, mas Emma não duvidava que mal passasse a soleira da porta, esta estaria a puxar de uma chave de fendas e a atacar o seu gerador. Outra coisa não seria de se esperar de quem fora criado por alguém que o seu pai, por admissão própria um louco moderadamente funcional, considerava ter parafusos em falta.

Emma sabia pouco de Harold Hanover e ainda menos das circunstâncias que haviam criado a brecha entre ele e o seu pai. Ela tinha só dois anos quando os seus pais haviam saído de Danebre, onde o seu tio ainda residia. Porém, o que lera e ouvira sobre ele dava-lhe a certeza de que nenhuma filha sua falharia em esquivar-se à norma, pois esquisitice era tão ou mais contagiosa que estupidez. Se Emma aprendera algo no decorrer do ano que passara, esse algo havia sido que esperar o pior era o modo mais pragmático de abordar a vida. Amelie podia ser um digno exemplo de prima. Ela não negava existir uma possibilidade de esta ser uma jovem completamente normal e aceitável, que não a faria arrepender-se amargamente de ter dito à sua futura sogra para a incluir na lista de convidados.

Mas seria sensato começar a preparar-se para o contrário.


Amelie Marguerite Scarlett Aston Hanover-Finn encontrava-se no seu camarote, a rodopiar em frente a um espelho de corpo inteiro como um sublime, atractivo e elegante pião do desastre. A dada altura, os seus pés enredaram-se nas saias do vestido e a jovem capotou contra a cama. Um abafado “Owf!” mais tarde, ela encontrava-se novamente de pé, a rodar de braços abertos como se não tivesse caído. Amelie e o chão eram velhos amigos que se visitavam com regularidade.

- Eu. Sou. Maravilhosa! – exclamou. “Maravilhoso” era a palavra favorita dela. Amelie era alguém que encarava falta de auto-estima como sendo uma doença bizarra que atacava outras pessoas, pessoas que não ela e que não tinham a felicidade de ser tão fisicamente aprazíveis quanto ela. Parando em frente ao espelho para ajeitar o vestido, uma peça de cetim verde que requeria uma certa figura para ser envergado sem que quem o envergava parecesse um legume, ela fitou o seu reflexo.

Amelie não carecia de espelho para saber que o seu rosto seria o mais belo da sala mesmo que houvesse um baile movimentado a ter lugar nela. O candeeiro de tecto, que oscilava para trás e para diante com os movimentos do navio, espraiava uma luz que empalidecia em intensidade quando comparada à radiância dos seus olhos, mas era suficiente para salientar a suavidade da sua pele em tons de caramelo, o ondulado dos seus cabelos castanhos, a curvatura dos seus lábios e pestanas e as covinhas nas suas bochechas e queixo. Amelie encostou um dedo ao queixo em questão. Estava a chover no lado de fora do navio. Ela esperava que quem a viesse receber estivesse com um guarda-chuva, ou a água frisaria o seu cabelo. Cabelos frisados eram a cruz da sua existência.

Reconhecer quem a viera receber seria um problema confesso. As fotografias que Amelie vira do seu tio eram de antes de ele transferir o seu Relógio do corpo que este ocupara por dois séculos para um corpo de carne. Era quase certo que seria irreconhecível na sua nova forma. A sua tia, essa não surgia em foto alguma. Por despeito, suspeitava a jovem. Elysa Meinka viera e arrebatara um dos dois irmãos para um fim do mundo do outro lado do mar, e aquele que ficara nunca lhe perdoara a ofensa. Pior, o irmão que fora trocara a perenidade do metal por uma prisão de carne e pelas amarras do matrimónio. Amelie nunca ouvira essa afirmação ser feita com menos que repulsa e ressentimento, mas imaginá-lo nunca falhara em humedecer-lhe os olhos. Para além de parecer uma em aspecto, ela tinha a alma de uma heroína romântica. No seu livro, era impossível um sacrifício feito por amor ser “O mais maldito erro que aquele imbecil cometeu desde que o seu Relógio foi activado, e isso é isso.”

Quanto à sua prima, a que respondera ao seu cartão, Amelie não tinha memória dela. A réplica que recebera havia sido curta e rígida e exprimira surpresa por ela existir, o que era ridículo. Os seus tios não podiam desconhecer a sua existência. Ela tivera três anos quando eles haviam deixado Danebre, e era quase certo que nesse tempo o tio Walt precisava de ter visitado a oficina pelo menos numa ocasião. Mais provável seria que tivessem preferido não informar a filha de que esta tinha uma prima, por temerem que isso a fosse fazer desejar retomar a comunicação com o outro lado da família. Amelie esperava que não os aborrecesse que tivesse sido ela a tomar essa iniciativa.

Mas mais importante que o perigo de não ir reconhecer os seus parentes, era o perigo de não ir estar suficientemente apresentável quando os encontrasse. Como esta descobrira tardiamente, Amelie e navios não eram a mais ideal das combinações. A sua visão de viajar de barco fora uma que pecara por ser idílica; golfinhos e peixes-voadores e tartarugas-marinhas e entardeceres passados debruçada sobre a amurada haviam marcado presença nos seus pensamentos. Que ela se encontrara debruçada sobre a amurada com frequência era facto, mas infelizmente, fizera-o maioritariamente para vomitar no oceano a sua última refeição. O seu segundo e terceiro dia de viagem haviam sido passados trancada dentro do camarote, com a cara de uma verdura de pepino e o estômago a arder como se o tivessem atravessado com um tição em brasa. As marcas do seu longo enjoo já não eram visíveis no seu rosto, mas Amelie considerava que mesmo o maravilhoso podia ser melhorado, razão pela qual seleccionou um dos chapéus alinhados sobre a cama e o espetou na sua pilha de cabelo. Se os seus tios eram como a sua prima, e a sua prima era como a resposta que esta dera, estes não apreciavam desleixo.

O que, admitia ela, podia ir ser um problema também.


Começara a chover enquanto Emma esperava no pontão. Ela correra para se ir abrigar sob um toldo. De debaixo dele, a jovem assistira ao desembarque de passageiros e marinheiros de caixotes ao ombro. De entre os primeiros, a maioria fizera por desaparecer ou chamar uma carruagem, e nenhum deles correspondia ao que ela sabia dever esperar de uma prima sua. Na doca permaneciam apenas dois funcionários da Coroa, que se encontravam espremidos um contra o outro sob um guarda-chuva. A presença deles daquele lado do Estreito era costumada, ainda que o craduense comum tratasse mandatos vindos de fora de uma eufemisticamente selectiva forma. Fron no seu todo tratava o seu estatuto de colónia como pouco mais que uma formalidade, e a Coroa tolerava esse estado das coisas enquanto problemas não fossem levantados e os impostos pagos.

Emma colocou os olhos no alto e bateu no chão com o sapato. O sol principiava a desaparecer por detrás da barragem. Acima da sua cabeça, um barulho profano encheu o céu, sendo seguido por uma forma oval que partiu as nuvens e mergulhou o cais na sombra. A rapariga soprou por entre os dentes e fez uma carranca na direcção do dirigível. As passagens do aborto de metal e gás primavam pela pontualidade, significando que deviam ser seis horas. E Amelie continuava sem marcar presença.

- Bons dias e bons ventos, Emma - disse uma voz atrás dela. Emma reconheceu-a como pertencendo à senhora Amanil, e virar-se confirmou a sua suspeita. A mulher encontrava-se parada com uma mala na mão, e ao lado dela estava parado um híbrido de pessoa e bagagem. Vê-las não a surpreendeu. Ela calculava que com o calor a chegar ao continente, Ermelinda Amanil fosse aparecer cedo ou tarde. Esta vinha com as estações, contrariando o desígnio segundo o qual a ordem natural concebera as aves migratórias e recolhendo-se em Cráduma mal a temperatura começava a subir. Emma conhecia-a porque os seus pais haviam sido visita frequente no chalé na falésia do qual esta era proprietária.

- Boa tarde, senhora Amanil – respondeu a jovem. Os seus olhos varreram o cais, ainda em busca de um rosto que pudesse pertencer à sua prima extraviada, antes de se irem deter na criatura-mala. – E o mesmo para ti, Jesha. A vossa carruagem não chegou ainda?

- O três vezes amaldiçoado cocheiro conseguiu quebrar uma roda no caminho para cá, e não teve nem a gentileza de nos oferecer guarda-chuvas. Opões-te a que nos abriguemos contigo enquanto esperámos que ele resolva o problema? - Emma não se opunha, e disse-o. Ela desviou-se para dar às duas espaço onde se encostarem e largarem as malas. Jesha pousou-as no chão, metodicamente. O seu rosto vestia a sua habitual expressão de perpétuo susto, e ela sussurrou algo ao ouvido da mãe antes de deixar os ombros descair e se encostar à parede. Jesha era, para o colocar delicadamente, peculiar. - Que te traz aqui, minha querida? O teu turno na fábrica terminou mais cedo?

- Não - disse Emma, com um simulacro de sorriso. Se lhe fosse dada uma coroa por cada “querida” que a mulher arremessara na sua direcção durante os anos em que a conhecera, ela seria a mais rica jovem de Cráduma. - Estou à espera de uma prima minha, que veio convosco no Carlada. Poderá talvez dizer-me onde ela pára? Porque já todos desembarcaram, e não vejo sinal de ninguém que se enquadre no que me foi dado a esperar. - A lista de coisas que irritavam Emma iria, se desenrolada, estender-se desde o cais até à base das falésias, mas falta de pontualidade era um dos itens que a encabeçavam. Ela não iria ao ponto de ser desagradável para com Amelie quando esta se dignasse a dar um ar da sua graça, mas fez um voto solene de a ir fuzilar com um olhar ressentido.

Algumas pessoas chamavam-lhe azeda. Emma nunca entendera porquê.

- Tens a certeza absoluta de que ela veio no navio? Porque a verdade é que não me recordo de nos termos cruzado. - A senhora Amanil tocou o queixo com um dedo. - Embora me ocorra que houve uma rapariga que passou a viagem quase inteira doente no camarote. Emily ou Amelie, ou algo do género.

- Amelie, essa é ela. - Doença. Então a outra não se atrasara por alguma razão frívola, o pior crime que era possível cometer-se nos olhos dela. A definição de “frívolo” de Emma era uma que faria um faquir em jejum abanar a cabeça com descrença, mas ela sustinha-a com maníaco e intransigente fervor. - Esperarei um pouco mais. Se ela continuar sem aparecer, irei ver se algo de errado se passa.

- E fazes bem. Ela pode ter piorado, a pobre querida. A minha Jesy também tem estado constipada, por isso deve andar por aí algum vírus. - Jesha tossiu à laia de demonstração e retomou a sua anterior expressão de desconforto amedrontado. – Mas agora que aqui estamos, os ares do mar irão tratar de resolver isso. Ficaremos durante um mês, e conto rever os teus pais enquanto aqui estiver. A querida Elysa prometeu-me uma receita de pudim, embora suspeite que vá ter de lho relembrar. Ela deve estar tão esgotada, tendo tido um bebé numa tão avançada idade...

Claro, murmurou Emma no sossego da sua mente, após pestanejar com ar chocado. As Amanil vinham somente uma vez por ano, e a última visita delas dera-se antes da sequência de desgraças.

- A minha mãe morreu. - Vagarosamente, o sorriso educado que marcara presença no rosto da mulher desde que ela se aproximara desfez-se. Jesha tirou um momento para parecer perturbada. E Emma prosseguiu, mantendo a voz átona apesar de o tema não ser um que favorecesse a conservação de serenidade. - No entanto, julgo lembrar-me de a Bertha ter ficado com os livros de receitas dela. Posso tentar encontrar-lhe aquela que tencionava pedir, se ainda estiver interessada. Se me explicar…

- Oh, Emma. Oh, minha pobre, pobre criança. - Com um ruge-ruge de saias e um rasgo de movimento, a senhora Amanil puxou a jovem para um abraço, que esta suportou apenas por não desejar ofender. Havia uma linha de humidade a formar-se sob as pálpebras pesadamente maquilhadas da mulher. Ela sabia isso porque esta não tardou a converter-se em gota, e de seguida em enchente. Emma assistiu ao pranto com um ar distanciado que só se desfez quando as lágrimas lhe começaram a correr para o ombro. Então ela fez por afastar a outra, tão delicadamente quanto era capaz. - É quase impossível crer, era ela tão jovem…isto deve ser tão difícil para ti, e não consigo imaginar, o teu pai, o bebé…

- Eu aprecio a sua preocupação - disse Emma, pois precisava de dizer algo para preencher o espaço entre os molhados borbotos de ruído que saíam da garganta da senhora Amanil. Jesha enfiou a mão no bolso do vestido com uma genérica expressão de pesar por alguém ter morrido, retirou um lenço de dentro dele e estendeu-o à sua mãe, que lhe pegou e assoou o nariz nele com um som que era tudo excepto adequado para ser emitido em público. - E estou certa de que os meus pais também.

- Como é que algo assim foi acontecer? - Ainda havia soluços entre as palavras, mas Emma fez por o ignorar. A senhora Amanil estava a reagir como era normal reagir-se a uma novidade como a que lhe acabava de ser dada. A reagir como ela teria reagido se na altura não tivesse havido demais para ser feito e decidido, demasiadas obrigações para que luto fosse um luxo ao qual se podia dar. - Nunca se ouviu falar de um Relógio a parar tão antes da data prevista, e o teu pai costumava ser um Relojoeiro. Não imagino que não tenha havido nada a poder ser feito, além de…oh. - A mão da mulher voou para a sua boca. - Ela não…ela não tinha o teu problema, pois não? Porque nunca a ouvi referi-lo…

Emma suspirou. A sua detestação pela deformidade mecânica que tornava obsoleto o Relógio dentro do seu peito apenas conhecia rival no seu ódio pelo facto de todos estarem ao corrente de que havia algo de errado com ela. O seu Relógio mantinha-a em vida, mas aí terminava a sua utilidade. Era impossível adivinhar a hora a partir das suas batidas irregulares, assim como tentar modificar o seu funcionamento ou aceder ao seu interior. Se o espólio da biblioteca de Cráduma era fonte viável de informação, ela era a única pessoa no mundo a sofrer de semelhante anomalia.

Emma realmente, realmente não apreciava anomalias.

- Não - retorquiu. - Ela cometeu suicídio. Mesmo o mais talentoso Relojoeiro pode pouco quando o seu paciente tomou medidas que tornam impossível reanimá-lo. O meu pai encontrava-se de mãos atadas.

- Isso…- começou a senhora Amanil, mas o seu parcialmente sufocado sussurro foi abafado por um grito que se levantou na outra extremidade do cais, saído da boca de uma figurinha que se encontrava parada na doca com uma montanha de malas ao lado e um guarda-chuva seguro sobre a sua cabeça.

- HANOVER! - bradou ela novamente, sobressaltando um trio de gaivotas que a chuva e o seu outro grito haviam falhado em desalojar do mastro no qual se achavam empoleiradas. - Hanover, aqui!

- Eu não diria que ela parece muito doente - murmurou Emma, erguendo o braço e acenando à figura, que produziu um guincho com mais de algumas semelhanças com os que a sua irmã bebé costumava soltar, e começou a correr na direcção delas. - Senhora Amanil, Jesha, podem dar-me licença por um instante? Penso que a minha prima nos acaba de descobrir.

O primeiro pensamento a passar pela cabeça de Emma, quando Amelie saiu do meio da chuva torrencial, e se aproximou o suficiente para ser vista como algo outro que uma figura difusa, foi algo na linha de “Porque tem ela um queque em cima da cabeça?”. O segundo pensamento, esse ligeiramente menos coerente, foi “Arp!”. Um “Arp” que secundou com um passo dado para o lado, impedindo-se de ser levada de arrasto quando a outra derrapou e veio na sua direcção como um míssil descontrolado.

Jesha, cujos reflexos eram menos afinados, foi atingida de frente e desabou numa pilha de saias de folhos e bagagem, exemplo no qual Amelie a seguiu. Uma rajada de vento arrancou-lhe o queque da cabeça e soprou-o na cara de Emma, que o apanhou e examinou. Não um queque, então. Um chapéu. A sua prima era alguém que voluntariamente usava chapéus semelhantes a queques.

Preocupante.

- Desculpa. Peço imensas desculpas. – Amelie estava a levantar-se. Jesha continuava no chão, a exibir uma expressão confusa. Recompondo-se em tempo recorde, mas não a tempo de ultrapassar a senhora Amanil, que já estava a pescar a filha do pavimento molhado, Emma passou a sua prima em revista. A aparência desta não dizia tratar-se de uma típica menina da grande cidade. Ela gritava-o. Jesha, invejada entre as raparigas locais pela indumentária e por pouco mais, dir-se-ia uma varredora de rua quando posta ao lado daquela aparição em cetim verde. Ainda que a aparição em causa estivesse a derramar água por todos os poros, e a respingar grande parte dela para cima da senhora Amanil que, por sua vez, se estava a esforçar para permanecer graciosa.

- Olá, sou a Amelie - disse Amelie, dirigindo-se a Jesha, que se dobrou sobre o seu estômago e rebentou num ataque de tosse rouca. - Tu és aquela que me escreveu de volta, não és? A…Ellie?

- Je…Jesha – gaguejou Jesha, olhando a sua mãe como se pedisse instruções. – Nenhuma Ellie.

- Oh. Bom, a carta que recebi estava assinada por uma, mas posso ter lido mal. Afinal, ela estava escrita numa caligrafia que era um martírio para se entender. E ooh, olha, até temos malas idênticas e a condizer, não há dúvida de que somos família! – Amelie arrancou o queque das mãos de Emma e esborrachou-o em cima da cabeça sem dispensar à jovem um olhar que fosse. A sua atenção estava toda em Jesha, que tremia como se os seus pés procurassem cavar um buraco no qual se esconder, e na senhora Amanil, que se Emma podia servir de juíza, estava menos que entusiasmada com tudo aquilo. Amelie encarou-a. – Tia Elysa. É a tia Elysa, não é? Desta vez acertei.

- Lamento, mas não – replicou a mulher, levando o lenço aos olhos e secando os seus cantos. Tudo o que Emma conseguia pensar era “Elas vieram no mesmo barco. Elas vieram no maldito mesmo barco, e ela não é nem capaz de dizer que elas não são a sua tia e prima? O que no mundo há de errado com a cabeça dela, para além do facto evidente de esta se encontrar enfeitada com artigos de pastelaria?”. – A tua tia…oh, é demasiado horrível. Ela contar-te-á com certeza. Emma, querida, avisa o teu pai de que mal possamos, eu e a Jesy o visitaremos para lhe darmos as nossas condolências.

- Receio que tal não vá ser possível. O meu pai está em Skagard. - Os olhos da mulher aumentaram de tamanho, e a mão na qual ela segurava o lenço descaiu. O seu horror era tanto como seria próprio, mas a sua surpresa afigurar-se-ia falsa ainda que Emma não conhecesse a improbabilidade de existir quem acreditasse que Walter Hanover não acabaria num hospício mais cedo ou mais tarde. - Mas não hesite em passar por minha casa. Embora eu vá estar fora mais vezes que não, a Bertha terá todo o prazer em desencantar a receita que deseja. Tenham um excelente resto de dia, as duas. - Jesha deu-lhe um aperto de mão que era tão tremelicante e isento de vitalidade como ela mesma, e começou a recolher as malas que se haviam espalhado sob o toldo. A senhora Amanil permaneceu quieta por uns instantes, sacudindo a cabeça como se não estivesse certa do que devia dizer, até decidir desarmar a desconfortável atmosfera com um aceno na direcção de Amelie e um olhar húmido dirigido a Emma.

- Não te incomodes com a receita, querida - murmurou ela. Emma ia para replicar, mas um corpo duro colidiu com ela, deixando-a tonta e maleável o suficiente para ser puxada para outro abraço forçado. A sua voz acabou sufocada no ombro de Amelie, e quando ela sucedeu em retirar o rosto dele, as duas tinham-se ido. Eternidades mais tarde, a rapariga libertou-a e postou-se à frente dela, a sorrir.

- Emma e não Ellie, então! - declarou, com ar triunfante. - Desculpa o engano. - Emma ainda estava a refazer-se da excessivamente familiar noção de familiaridade que a outra tinha. Ela inalou; exercícios de respiração ajudavam-na quando o seu Relógio começava a acelerar em demasia, mas era raro que contribuíssem para que o seu olho esquerdo parasse de tremer e a veia na sua têmpora de pulsar.

- Não há problema. E tu és a Amelie. Amelie Marguerite Scarlett Hano…

- Amelie chega muito bem. - Emma revirou os olhos. Ela dera-se ao incómodo de decorar o nome, e que os Criadores a levassem se não seguraria com unhas e dentes a única oportunidade que teria de o utilizar sem que a sua fachada irrepreensível se quebrasse. - Respondo por Mel, também, mas só...

-...ver-Finn, a filha do tio Harold. Como está ele? Mal me recordo de quando o vi pela última vez.

- Oh, bem. Absolutamente-fantasticamente-estrondosamente bem. Só ocupado com o trabalho, e tudo mais. Trabalho, e Sua Majestade Maud, que viva muitos anos, a chatear-lhe a cabeça. - Emma piscou os olhos à descontracção com que a afirmação fora feita, embora suspeitasse que tivesse ela crescido num lugar que não Cráduma, esta não seria razão para estranhar. Harold Hanover não era apenas um Relojoeiro, e Hanover era um nome que coloria as páginas de livros de história. O seu tio era um herói a par com a Primeira Rainha e o Décimo Terceiro Pelotão. O mundo em que viviam, um mundo que o Êxodo libertara da opressão dos Criadores, devia a sua existência em grande parte aos esforços dele. Tivessem permanecido em Danebre, e a sua família seria célebre, algo que ela só o sabia por se tratar de uma das coisas que o ensino obrigatório lhe ensinara. Os seus pais não falavam no assunto, e o resto de Cráduma não estava interessado em mencioná-lo. - E os tios, estão como?

- Isso é algo que prefiro discutir em casa. Precisas de ajuda com a bagagem?

- Não, não há nece...whopst! - Na pressa de ir recolher uma mala que rolara para fora do toldo, Amelie perdeu o equilíbrio e acabou estendida ao comprido numa poça. Emma revirou os olhos e estendeu-lhe a mão para a puxar para cima. - Desculpa, desculpa, sou tão desastrada. "Descoordenação" devia ser o meu nome do meio. - Tu já tens nomes do meio de sobra, pensou ela, mas não o disse.

- Não tem importância.

- É claro que tem.

- Não, realmente, não tem importância. Leva apenas duas malas. Eu tratarei do resto.

- Oh, não será preciso, a sério, eu posso com elas todas. Só um segunwhooopss...


O dirigível que fazia o percurso entre Cráduma, Cidade Flutuante e o resto de Astarte era uma relíquia dos primeiros anos pós-Êxodo. O homem das luvas não colocava em causa que este vira reparações nos seus três quartos de século em serviço, mas ele apreciava poder ter presente que em circunstâncias extremas, partir o vidro e saltar para fora seria possível. Embora se tratasse de um pormenor que inicialmente encarara como sendo supérfluo, ele dava graças a Sua Majestade por ter sido colocado em primeira classe. Segunda classe e balão encontravam-se acima e eram isoladas do exterior. Na parte inferior do dirigível, a sensação claustrofóbica que as paredes de metal recurvado lhe davam era menor, embora não duvidasse que estaria em pânico caso sofresse de vertigens.

- Sublime - disse o sujeito ao lado dele. O americano. O homem das luvas notara, quando ele se dirigira a um dos do grupo que o acompanhava, que todos falavam a mixórdia incompreensível de mecân própria do ocidente do mundo civilizado. Ele ignorava se o americano se lhe dirigia ou se este apenas pensava alto. Este estava fixado no chão de vidro como se nunca tivesse visto um.

O que não era tão estranho quanto isso, agora que ele parava e pensava. Na parte levantina de Astarte era comum verem-se aeróstatos com base vítrea, mas nas Américas tinham-nos banido por razões de segurança. Que alguém de lá vindo reagisse com espanto ao descobrir-se capaz de olhar para baixo e ver aquilo que o dirigível sobrevoava era até muito compreensível.

- Primeira visita? - O homem das luvas foi arrancado ao seu devaneio pela inesperada questão do americano. Este dirigiu-se-lhe de onde estava: imóvel sobre o vidro. Se olhado de determinado ângulo, dir-se-ia que o sujeito flutuava sobre os tectos de aço negro aglomerados sob o dirigível. Tectos, disse o homem das luvas para si. Significando que em breve aterrariam. Com franqueza, já não seria sem tempo. - Só o digo porque parece nervoso. Se precisar, um dos meus colegas tem tónico calmante.

- Um pensamento simpático, mas não é preciso. - Nervos estavam longe de ser o que ele sentia.

O homem das luvas atravessara o Estreito para encontrar os assim chamados parentes de Harold, embora fosse improvável que soubessem de algo. As relações existentes entre os Hanover de um lado e do outro do oceano eram parcas e esporádicas, e os irmãos - hah! - não se viam em pessoa desde que Walter se mudara. Uma contenda acerca de uma mulher, tinham-lhe dito quando inquirira sobre o motivo da separação, e de entre todas as pobres razões para colocar fim numa associação com dois séculos de idade, essa parecia-lhe ser a mais idiota. Mas Walter sempre fora um romântico, a passo que Harold…Harold tinha sempre sido Harold, e dizer isso era dizer mais que o suficiente.

O homem das luvas não pretendia deter-se longamente em Cráduma. As Hanover residentes na cidade eram duas raparigas decididamente novas demais para estarem por dentro dos assuntos de que desejava informar-se. Ele pararia pelo tempo de as informar do sucedido e seguiria viagem para a ilha de Skagard. Lá, numa sala branca do Instituto Relojoeiro, residia a sua melhor fonte de respostas. Rever Walter seria uma merda de uma experiência ainda que este não tivesse desenvolvido um infeliz pendor para atirar essa substância às paredes. Eles nunca se tinham dado, e agora que o sujeito se encontrava doido que nem um cuco, o homem das luvas preferiria tirar dentes a ferro do que falar-lhe.

Mas precisava de ser feito. Havia uma cavidade vazia na sua mente, e ele precisava de saber.

- Avise caso mude de ideias - disse o americano. Uma pequena hesitação mais tarde, este estendeu-lhe a mão. - Joshua Laertes. Aventureiro, estudioso, explorador e ex-viciado em ópio. Prazer.

- Investigador anónimo. - O homem das luvas apertou a mão e estudou o corpo ao qual esta estava agarrada. Laertes não passava a impressão de ser nenhuma das coisas que enumerara, exceptuando a terceira. Esta era apregoada por tudo na aparência dele, desde os óculos quadrados à jaqueta de mestre-escola. O que só tornava mais bizarros os seus restantes créditos. - Igualmente.

- Veio gozar o ar marítimo? - Aparentemente convencido de uma apresentação unilateral equivaler a autorização para iniciar uma conversa, Laertes apontou para baixo. - As praias daqui significam pouco, desde já aviso. Talvez em Hakon consiga encontrar um par de metros de areia, mas terá de passar a falésia para lá chegar, e a água deverá estar demasiado fria para querer entrar nela.

- Sorte minha que não tenha vindo de férias, então.

- Ah, então é um apaixonado por História. - Ao notar-se alvo de um olhar curioso, Laertes elaborou: - A única razão para quem quer que seja se dirigir aqui é ou a comida…está a ver aquela padaria ali, entalada no canto da praça? A com o tecto esverdeado? Ali fazem-se as melhores quiches deste lado do Estreito, vá por mim. E a História. Fron é rica nela, em particular esta parte dela. A barragem é uma atracção óbvia, é claro. Toneladas de pedra datando do Aquecimento, usadas na época para manter à margem a água dos degelos, e usadas nos tempos da guerra como primeira linha de defesa contra as nossas forças. Mas há mais; escave fundo, e encontrará restos de tecnologia dos Criadores. Tanques e canhões automáticos, e mais. Há até uns quantos locais com Relógios Eternos, que estavam vivos na altura e assistiram a tudo, consegue imaginar? Os contos que eles não nos poderiam contar…

- Houve sangue - disse o homem das luvas, num sussurro. A praça havia sido deixada para trás, e o dirigível principiava a sua descida para o aeródromo empinado no topo da falésia. - E corpos, e gritos, e pólvora, e cabos eléctricos caídos a crepitar nas poças. Mas sobretudo sangue. Choveu rios no dia da tomada de Fron, mas de alguma forma, as ruas continuaram vermelhas até ao anoitecer por mais que a água as lavasse. Serão essas as histórias que que lhe darão a escutar, se aqueles a quem as pedir tiverem realmente lá estado. - Ele interrompeu-se e verificou que Laertes o encarava com um ar de educada curiosidade. - E não, o valor histórico deste lugar não é a razão de eu aqui estar. História, já a vi e vivi o suficiente da última vez que cá estive. Você veio por ela, suponho?

- O que o faz pensar isso?

- Para além dessa lição em miniatura? “Gastrónomo” não fazia parte da sua lista de ocupações.

- Ah - riu-se o outro, passados momentos. Ele deu uma pancadinha no bloco de notas que espreitava do bolso das calças de flanela. - Isso é um facto. Estou a fazer uma modesta tentativa de compor uma crónica desta colónia, em particular desta cidade. - O homem das luvas olhou para além da cabeça de Laertes e do sorriso benigno que bailava nos seus lábios finos, para o grupo dele, que ocupava a fila de bancos do outro lado do círculo de vidro no chão. Ele indicou-os com o dedo.

- Precisa de tanta ajuda assim para a escrever? - comentou, num tom que nada pretendia implicar e tinha uma miríade de implicações por esse mesmo motivo.

- Ficaria surpreendido - respondeu Laertes, descontraidamente. - É na verdade um golpe de sorte que me tenha deparado consigo. Tropeçar num veterano é mais difícil do que se poderia pensar, acredite. Que me diz a juntar-se a nós para jantar, quando aterrarmos? Porque tenho de me confessar intrigado com a sua…crua perspectiva dos acontecimentos. - Indeciso entre se haveria de lançar ao sujeito um olhar incrédulo ou dar uma fungadela descrente, o homem das luvas acabou por optar pela fungadela.

- Lamento, mas não estarei disponível. Tenciono pernoitar na cidade e partir amanhã de madrugada.

- Pernoitar na cidade? - O som que Laertes fez foi quase idêntico àquele que ele acabava de emitir. - Creio que Cráduma mudou um pouco desde o seu tempo, meu amigo. Depois de dois rapazes terem caído e partido todos os ossos do corpo durante uma descida nocturna, decidiu-se que os carreiros da falésia seriam vedados depois do pôr-do-sol. Terá de esperar até de manhã se quiser descer.

- Isso é um revés inesperado - concedeu o homem das luvas, fitando o vidro que o fundo de rocha que sobrevoavam transfigurara em espelho. O seu reflexo devolveu-lhe a mirada. Ele moveu os olhos para lá dele, e fê-los parar onde a falésia se unia à barragem. - Mas confio que me conseguirei arranjar.


- Então isto é Cráduma - disse Amelie. Cráduma como os olhos dela a viam era casinhas pitorescas de três andares, tão juntas que se quisesse atravessar a cidade andando sobre os tectos seria capaz de o fazer sem colocar os pés no chão uma vez que fosse. Cráduma era pedra preta e cinza, telhados cobertos de chapa que parecia ter sido vertida sobre eles como cera de vela, e os “clang, clang, clank” característicos de uma cidade senciente. Tubos em tons de bronze saíam das casas, enroscando-se em torno delas como uma multitude de braços. Carruagens - para seu divertimento e consternação, ali preferiam-se carruagens a automotores - passavam de minuto em minuto, o que tomou como sinal de se tratar de hora de ponta. - Parece-me muito…acolhedora. - Mas Danebre era decididamente melhor.

- Cráduma – concordou Emma, sem sorrir. A sua prima insistira em levar-lhe parte das malas, apesar das suas garantias de que o que lhe faltava em coordenação motora ela compensava em força braçal. Amelie não estava certa daquilo que sentia por Emma. Esta fora, desde a sua chegada e durante todo o caminho, infalivelmente educada e prestável. Mas seria pedir demais que se mostrasse pelo menos um pouco calorosa? - Lar de rochedos, gaivotas e labregos, onde há pouco que se faça para além de pescar e partir pedra. Temos duas festas anuais, Celebração do Êxodo e Sacrifício ao Mar, que contrariamente ao rumor que parece correr no continente, não envolve deitar Relógios à água.

- Bem, eu nunca me atreveria a assumir…

- As pessoas daqui são gente que em tempos idos, agitaria tochas e forquilhas junto à muralha do castelo ao primeiro sinal de aumento de impostos. Obviamente, tal não é exequível nos tempos que correm; Sua Majestade encontra-se demasiado longe. Funcionámos com base numa política de “Cada um tem a sua vida”, e ainda numa de “Se partes, pagas”. Procura manter isso em mente, quando fores ser desastrada em presença de gente ou presença de posses de gente.

- E eu não apanhei um terço disso tudo.

- Chegaste a tempo do Dia do Êxodo - continuou Emma, como se ela não tivesse falado. Esta andava como uma máquina, sem variar o passo e sem permitir que obstáculos a empecilhassem, detendo-se somente para prestar uma atenção simbólica ao que a rodeava ou para retribuir cumprimentos quando um lhe era dirigido. Clac, clac, clac, faziam as solas das botas dela na calçada. Amelie pensou em perguntar-lhe se ela era um construído; não era como se houvesse algo de errado nisso, mas muito seria esclarecido se existisse mais metal na sua prima para lá de um Relógio. Embora construídos se tivessem tornado raridades nas décadas mais recentes, em que gente nascida e não construída era a norma, o número deles continuava a ser elevado. Que simplesmente olhar alguém não bastasse para avaliar do que a pessoa era feita não demoveu Amelie de encarar a prima com interesse estudioso.

- É tradição haver fogo-de-artifício - continuou Emma. Amelie anuiu.

- Fogos-de-artifício são maravilhosos! - disse, efusivamente. - Mas não celebramos isso em Danebre. Sempre me disseram ser de mau gosto comemorar a expulsão dos Criadores. Insistir em propagar o ódio não promove tolerância e é intolerante e é desagradável. Mas, fogo-de-artifício! Ena!

Emma fitou-a como se ela acabasse afirmar que o seu Relógio tinha forma de torradeira.

- Sabes - disse a rapariga, metendo por uma via secundária e fazendo Amelie quase estatelar-se no chão na pressa de a seguir - assim que entrarmos, irei apresentar-te à Bertha. Tenho a certeza de que ela adorará escutar as tuas opiniões relativamente aos Criadores e ao que lhes foi feito. Ela tomou parte na Terceira Guerra, tal como o meu pai e o tio Harold. Talvez queira partilhar contigo histórias que ainda não tenhas ouvido dele. Sabe alguém que aquela mulher adora tagarelar.

- Oh, o teu tio nunca falou da guerra comigo. E ainda bem, porque deve ter sido desagradável. Mas irei na mesma adorar conversar com ela, porque partilhar opiniões é uma das minhas coisas favoritas.

-…certo. - Emma parou de repente, em frente de uma casa e uma porta. Amelie avançou um passo e quase tropeçou no degrau. Não tinha a certeza, mas parecia-lhe que a outra revirara os olhos. Esta subiu o trio de degraus que conduzia à porta e remexeu debaixo do tapete até encontrar uma chave, que enfiou no buraco e rodou. A porta escancarou-se com um ruído de "crinnnchh”. - A Bertha cozinha e toma conta da Luce. Até ires embora, as tarefas excedentes serão divididas entre nós duas.

- Quem é a Luce? - Emma fez uma careta de limão fora de época.

- A minha irmã mais nova - replicou, e gesticulou-lhe que entrasse.

Amelie piscou para ajustar os olhos à luminosidade, ou falta dela, no interior da casa. Do lado de fora estivera nublado, mas dentro dela o ambiente também não primava pela ambiência. Tábuas estalaram quando as pisou, e ela inspirou uma dose de mofo que se fosse veneno, teria abatido um cavalo. Era como andar para dentro de uma tumba, mas não disse isso a Emma, que continuava a falar, aparentemente alheia ao facto de que o seu discurso se convertera em monólogo.

- A casa tem uma casa de banho apenas, e o limite de permanência dentro dela é quinze minutos por pessoa se houver fila. Se a Bertha te oferecer biscoitos, sorri e aceita. Se ela te oferecer chá, recusa educadamente. Pela tua saúde, recusa. O teu quarto é no sótão. Há uma clarabóia que podes abrir se quiseres deixar entrar mais luz, mas sugiro que trates de a olear primeiro, ou terás problemas em fechá-la. Há também uma lareira, e lenha na cave que podes levar para cima quando fizer frio demais. A que se encontra no caixote está seca e não encherá de fumo a casa inteira se a usares. A Bertha ocupa o quarto das visitas na maioria das noites. Estás proibida de lá entrar, assim como no meu, no da Luce e no dos meus pais. Refeições são feitas em conjunto às sete, uma e seis horas. Falta, e…

- Emma - interrompeu Amelie, que apanhara uma frase em cada três - é maravilhoso saber tudo isso, mas estou cansada e ensopada. Posso primeiro tomar um duche, instalar-me, dizer olá a toda a gente, e só depois aprender as regras da casa? Por favorzinho com cereja em cima?

Emma tinha ar de quem queria contestar. Ela acabou por não o fazer.

- Claro - respondeu, encolhendo os ombros. - Que queres fazer primeiro?

- O duche, se os teus pais não se forem zangar por não me ir apresentar de imediato.

- A minha mãe morreu há um ano atrás. O meu pai está num hospício. Eles não quererão saber.

- Oh. Oh….- Após tentar e não suceder em fazer mais que boquear como um peixe, Amelie calou-se.

- A casa de banho fica ao fundo do corredor do segundo andar - prosseguiu Emma, como se da sua boca não tivesse acabado de sair que a sua mãe se encontrava morta e o seu pai presumivelmente louco. - Hoje jantaremos mais tarde, mas não poderei comparecer porque tenho um compromisso. Se te acontecer teres um problema, dúvida ou pergunta, fala com a Bertha. Penso que isso é tudo.

- Certo - disse Amelie, atrapalhada, mas antes de se lembrar de algo para acrescentar, Emma girou nos calcanhares e afastou-se na direcção oposta, marchando dentro de casa como marchara na rua.

Pela aparência, aquela não ia ser a mais fantástica das visitas.


Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco entrançou o cabelo e prendeu-o com um gancho, impedindo-o assim de se meter no caminho quando as suas mãos puxaram, às cegas, a máscara de tecido sobre a sua cabeça. Ela recolheu os óculos de visão nocturna que deixara sobre o rochedo atrás de si, ajeitou-os no lugar e desprendeu o colar em redor do seu pescoço. Dele pendia uma aranha alada de bronze, e dentro do pendente havia um comunicador que por o Creaturarum depender de mobilidade como um recém-nascido de Relógio, era o seu único meio de contactar os outros mais frequentemente que não.

O Creaturarum não tinha residência fixa. Os seus membros dispersavam-se das Américas a Astarte, alguns operando em segredo, outros em pequenos bandos, obedientes às ordens que através dos comunicadores recebiam e unidos pelo comum objectivo de vingar quem os criara. Raros eram os agentes que recebiam a honra de conhecer aqueles de quem as ordens eram provenientes, e por isso, se por nada mais, Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco estava grata.

- Dez minutos atrasada. - Ela não os ouvira aproximar-se, embora supusesse fazer sentido que assim fosse. Dissimulação, discrição e agir sorrateiramente eram artes que não dominava, mas eram muitos os agentes que nelas se especializavam. Interrogando-se quanto tempo a teriam observado antes de decidirem revelar a sua presença, Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco alcançou a mala que tinha consigo e encarou a quadra de figuras que se libertava da sombra. - Eu e a Quatro temos um compromisso, e ficarei extremamente ressentido se a tua demora colocar em causa a nossa pontualidade, agente.

- Lamento. - Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco inclinou a cabeça. O seu Relógio quase falhara um tique, e ela deitou à única mulher do grupo um olhar que era afortunado os seus óculos ocultarem. Quatro, dissera o que se lhe dirigira. Números tinham pouca importância para lá de servirem de identificação, mas a maioria dos agentes não demorava a descobrir que ser subserviente àqueles cujo número era inferior a cem constituía uma útil dica de sobrevivência. A Elite, chamavam-lhes. Aquilo que agentes saídos de fresco das academias aspiravam ser capazes o suficiente para se tornarem, antes de terem semelhantes delírios expurgados à força das suas mentes. - Ma…mas eu consegui. Os planos.

- Os planos são inúteis sem o Relógio - disse o que se lhe dirigira. Trocar números não era obrigatório. Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco não sonharia exigir os dos três homens que não eram Quatro, mas intrigava-a qual o do seu interlocutor seria. Que ele estivesse a tomar a palavra fazia-a supor que a autoridade dele fosse superior à da mulher, e a deferência com que esta se afastou do caminho para lhe dar passagem corroborava essa hipótese. - Mas recuperá-lo não era tarefa tua, creio. Confio que os problemas que a extracção deu ao teu grupo foram resolvidos satisfatoriamente?

- O…o Relojoeiro tinha…tinha-os num cofre em Achinoque. Bem-guardado. Lei, agentes da Coroa e…

- Não foi essa a minha pergunta. - Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco sentiu frios dedos de medo apertar-lhe a garganta e ameaçar estrangulá-la. Involuntariamente, ela começou a raspar a luva na sua mão esquerda. A parte da mão visível através dos buracos que nela cavou cintilou em tons de prata. Quem quer que fosse o agente que lhe falava, aquele não era um tom de voz que pretendia dar-lhe motivo para usar novamente. Aos tropeções, ela completou o que começara a dizer.

- Onde Achinoque cost…umava estar existe agora uma cratera. Nenhuma m…mensagem saiu.

- Perfeito - murmurou ele. Sem aviso, a mala foi-lhe arrancada das mãos. Os dedos do outro passaram sobre a superfície metálica, quase numa carícia. Quando esses mesmos dedos puxaram pelos fechos, eles recusaram abrir-se. Ele virou-se para ela, e a sua irritação e impaciência eram visíveis, embora o rosto dele se encontrasse tão coberto como o seu. - A combinação?

- Dois, seis, cinco, cinco - respondeu Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco, sabendo que um olhar incrédulo lhe estava a ser apontado de detrás dos óculos do outro. Ela encolheu os ombros. Se adivinhassem a combinação por saberem o seu número, estaria perdida de qualquer dos modos, e tratava-se de uma simples de memorizar. Contudo, os fechos teimaram em não ceder, mesmo quando ele girou as rodas da fechadura nas posições correctas. Com um suspiro de irritação, o agente pousou a mala e afastou-se uns passos dela, ao mesmo tempo que fazia aparecer uma pistola. Um tiro silenciado mais tarde, a fechadura foi obliterada e um dos lados da mala saltou para cima, revelando o seu recheio.

- Agente…- disse Quatro, manifestando-se pela primeira vez ao dar com a ausência de papel dentro da mala. A mulher levantou o primeiro dos objectos que em vez disso ocupavam o seu interior e virou-o para que as letras douradas na sua capa resplandecessem à luz fosca do luar. -…explica isto.

- Eu…eu…eles estavam ali, eu nunca vi…eu não…- Ela olhou para o outro objecto, em desespero. Ele era mais bizarro que o livro que Quatro segurava, e mais bizarra ainda a sua presença ali, mas…

- Silêncio! - Um dos outros agentes estava a alcançar a sua própria arma. Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco sabia o que se seguiria. O Creaturarum tinha uma bárbara política para com falhanços. Acabar-se eventualmente executado por um erro minúsculo era uma noção com que cada agente menos que perfeito crescia, mas seria agradável ter tido mais tempo…- Obviamente, houve aqui uma falha.

- S…sim. - Ela fechou os olhos, inalando e expirando. Um clic fez-se ouvir, próximo do seu ouvido.

- Um momento. - Se lhe restavam dúvidas de ser o porta-voz do grupo o seu líder, dissipadas estas terminavam de ser. Cautelosamente, hesitantemente, ela entreabriu um olho, mas as atenções não se centravam nela. O outro encontrava-se inteiramente focado no Relógio dentro da mala, no qual pegara e que apertava contra si com reverente gravidade. A sua cabeça inclinou-se como que numa prece, como se ele escutasse sussurros vindos do interior do metal. Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco vira o mesmo ser feito várias vezes em baptismos; era norma, uma tradição datando do tempo da Primeira Rainha, um Leitor interpretar as ondas de código de Relógios de recém-nascidos e atribuir-lhes nomes que soassem vagamente como o que por ele era ouvido. - Ela encurtou o nosso trabalho pela metade, parece-me. Recuperar os planos ainda é vital, mas estou certo de que saberá o que foi feito deles.

- Eu…- Vinte-e-Seis Cinquenta-e-Cinco abriu a boca, descobriu que nada além de um justificadamente incrédulo “Estão a poupar-me?!” sairia dela, e tornou a fechá-la para só a reabrir após recuperar o seu autodomínio e decidir que efectivamente, acreditava saber o que acontecera. - Até quando tenho?

- Até ao Dia do Êxodo. E, agente? - Ela tremeu. - Se possível, recupera-os sem estardalhaço.


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Mensagem por Fox* Sex maio 25, 2012 10:16 pm

Moggo, tu tens um humor espetacular! És super sarcástica e levemente sádica, o que dá às tuas personagens um toque mais real e "pessoal", principalmente a Emma. Não sei bem passar para palavras o que gosto nela, mas a necessidade que ela sente (agora entrando em suposições) de organizar e ter tudo em perfeita normalidade porque ela não é, a modos que, normal, é bastante curiosa. Já não falando da forma como ela encara o que a rodeia! Gostei particularmente do pormenor do enfeite de pastelaria que a Amelie usava.
E essa é outra personagem, no valor da palavra. Lembra-me um pouco eu própria, porque também sou super tagarela (claro que ainda não reparaste nisso) e desastrada, consigo tropeçar em qualquer coisa à minha frente. Talvez por isso tenha gostado tanto dela e da sua ingenuidade.
Gosto também da tua forma de escrita. Dizer que não dás erros é um pouco ridículo (porque qualquer escritor que se preze vai além de escrever gramática e sintaxe correta), mas a tua forma de escrita é bastante curiosa e diferente do que estou acostumada a ler por aqui. Não te limitas a dar um pormenor como a cor do vestido, como é o dirigível ou, ainda, como é a personalidade de tal personagem, fá-lo através de muitas ironias e comparações, o que torna o capítulo (apesar de grande - atenção, não é uma queixa!), bastante agradável de ler.
Como te disse na tua apresentação, lembras-me Saramago. Ou Eça de Queirós. Ou Tolkien, se bem que este último seja largamente influenciado pela realidade que criaste aqui. É sempre agradável ver um novo mundo, mas tu foste muito além disso, criaste pequenos pormenores que eu nunca me lembraria de fazer, desde o dirigível ate comparações do tipo "o seu relógio tinha forma de uma torradeira."
Em suma, e encurtando um comentário demasiado pequeno para o capítulo que li, gostei e sem dúvida que vou tentar acompanhar! Os teus capítulos são grandes (acho que é a primeira vez que digo isto) mas nada cansativos e a história é bastante cativante, principalmente pelo tom em que é escrita!
Tens aqui uma leitora, esperemos, assídua! :)

PS: Gostas de Steampunk? E Júlio Verne? A tua obra lembra-me muito ambos mas talvez esteja a fazer confusão...
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Mensagem por Moggo Sex maio 25, 2012 11:25 pm

Hey, Fox. Obrigada por comentares. Deixa-me ver se consigo dar uma resposta condigna a tudo o que disseste, porque embora possas pensar o contrário, essa foi uma enorme opinião. (Obrigada!)

Primeiro, acertaste em cheio sobre isto ter características steampunk. Júlio Verne foi quem me despertou o interesse para histórias contendo elementos desses, mas a última vez que li algo dele foi há tantos anos que se teve influência em CDR, ela foi ou subconsciente, ou residual. Este texto foi escrito com uma lógica de "Eu gosto disto, logo, vai dentro!", e faz-me imensamente feliz que exista pelo menos outra pessoa que entenda o apelo.

Suponho que terei de viver com as comparações com Saramago, por muito que ler o Memorial me tenha traumatizado para a vida e tenha ganho rancor ao homem desde então. Vou tentar aceitá-lo como o elogio que provavelmente pretendes que seja. (Mas não me coloques na mesma frase que Tolkien. Eu não sou digna, e afirmar o contrário é dar ao Mestre motivos para revirar na tumba.)

Heh, as personagens. Estranho que tenhas engraçado com ambas, visto que são tão diferentes. (Eu partilho daquele problema de me descontrolar com a criação delas, por isso outras irão vir, mas que gostes de duas já não é mau.) E sabia que com os capítulos compridos me arriscava a desencorajar algumas pessoas, por isso é um alívio que esse não tenha sido o teu caso. É que, sem exageros, eles são todos assim. Tenho esta incapacidade crónica de saber quando é hora de parar.

Para concluir, estou-te muito agradecida por teres aparecido, e espero que este bocadinho realmente te tenha dado vontade de regressar.
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Mensagem por Fox* Sáb maio 26, 2012 2:03 pm

Bem me parecia (Fox a armar uma dança vitoriosa!) que me estava a lembrar Steam, não só as descrições do ambiente como os teus próprios desenhos! Muito bom, adoro realidades alternativas, principalmente se conseguires (como o fizeste aqui) unir tecnologia com épocas "vitorianas"! Júlio Verne pelas obras "A volta ao Mundo em 80 dias" e "Vinte mil léguas submarinas" (tenho aqui "Viagem ao centro da Terra", mas tenho outros ainda à sua frente!), lembraram-me muito do que falaste! Teoria "Gosto-Vai" é sempre boa de ser utilizada (já tentei mas há elementos que não acertam, mesmo que queira!)

Lamento pelo "Memorial"! Ainda não o li, mas li "As Intermitências da Morte" e devo admitir que gostei! Têm ambos um humor bastante sarcástico e negro! Daí a comparação!
E, é óbvio que ainda não és um Tolkien, mas tens um espaço temporal totalmente novo em coabitam, em tentativa de pacificidade, humanos e outras raças (tipo Terra Média!). Não sei se conheces Game of Thrones (que anda agora nas bocas do Mundo devido à serie), mas também é uma boa coleção!

Tens incapacidades crónicas de não saber quando parar, tanto de escrever como de criar personagens? Bem, o máximo que pode acontecer é esquecer-me de alguma, mas de resto não me parece algo de mau! Capítulos grandes são divertidos e trazem sempre mais informação, por isso não adivinho grandes problemas! Eu perco-me um pouco com muitas personagens porque depois não sei a quantas anda cada uma, mas a ler não me importo (mais uma vez GoT prepara-te para um quinhão de personagens!)

E sim, sem dúvida que este início de história me deu vontade de voltar! Já tinha começado a ler uma antiga história tua, começava com um vulcão a explodir e qualquer coisa de magia, mas não pude avançar devido àquilo-que-nós-sabemos no entanto, estava a gostar :D
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Mensagem por Moggo Sáb maio 26, 2012 2:36 pm

"Não sei se conheces Game of Thrones"? Obviamente nunca visitaste o meu blog, ou essa pergunta seria desnecessária. Um quarto dele é dedicado a Westeros. Talvez mais. Penso que isso diz o suficiente, não?

Eu li mais de Saramago além do Memorial (Caim, Ensaio sobre a Cegueira, etc.) O Intermitências foi-me muito recomendado por uma professora de português que ficou meio chocada quando lhe disse que não gostava do estilo de escrita do homem (eu acredito em pontuação, fazer o quê?), mas nunca lhe cheguei a tocar. Não estou a dizer que Saramago não tem coisas boas (referiste o sarcasmo e o humor, e é verdade que apreciei isso), mas simplesmente não é para mim.

Oh, pois, lembro-me de teres comentado em Passagem. Tenho o pdf. por aí algures, mas por enquanto não o vou publicar aqui, porque se trata de um texto em que não estou a prever tocar nos próximos tempos, e não quero deixar gente pendurada. Talvez, quando terminar CDR...logo verei.

E looool, nem me tinha ocorrido que os desenhos podiam parecer steampunk. Eles têm tons que agora que me chamaste a atenção para o facto até se ajustam, mas escolhi-os para condizerem com o layout do meu blog. (Meio ridículo, eu sei.) Acho que prefiro a tua interpretação.
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Mensagem por miaDamphyr Sáb maio 26, 2012 4:55 pm

Olha como eu sou uma fã incondicional disto. (Uau, que grande novidade! Parece até um segredo de estado) mas a sério, amo muito. A Emma e a querida prima fala barato, Emilie-nome-nome-nome-qualquer coisa. Sem contar que a tua escrita é soberba. Admiro muito, (outra novidade da casa branca) mas a sério que me encanta! E reler CdR, é ter a chance de descobrir mais coisas. (podem roer-se, mas me foi desvendado algo desse labirinto incrível) uma história perfeita, de uma escritora de mão a transbordar. Parabéns, estou aqui e não vou a lado algum. Bisous.
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Mensagem por Moggo Sáb maio 26, 2012 5:19 pm

ALERTA! ALERTA! Leitora demasiado informada às nove horas!

Calma, que estou a brincar. (Em parte. Ter-te aqui novamente é perigoso, especialmente tendo em conta que sabes dois terços do que irá acontecer, e essa informação É segredo de estado XD). Como sempre, obrigada pelas palavras simpáticas. Espero que gostes mais de reler CdR do que eu gostei de o reescrever :P
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Mensagem por PandoraTheVampire Seg maio 28, 2012 11:26 am

Bem Moggo, finalmente tive tempo para comentar. Vou começar pelo princípio. Adorei os detalhes que puseste na história dos humanos vs as máquinas. É um tema que gosto muito. Mas o teu tem, certamente, algo de diferente do que já anda por aí sobre isso. Achei curioso os humanos terem-se refugiado na Lua e, pergunto-me, será que eles vão aparecer? Ou esta história é apenas centrada nas máquinas?

Depois, a Emma é awesome. Composta, decidida. Imaginei-a sem um cabelinho fora do sítio. Não por ser vaidosa, mas por querer ser perfeita e normal! Quero conhecer mais sobre o relógio dela e porque não trabalha devidamente...

A Amelie é uma gargalhada andante. Gostei muito dela porque também eu sou super, hiper, mega desastrada. Identifiquei-me... e os chapéus com artigos de pastelaria são um must. Estou curiosa sobre o que a levou até Emma... terá sido só a curiosidade de conhecer o resto da família, ou algo mais?

Quanto ao pai da Emma, que ainda nem sequer apareceu devidamente, estará mesmo louco? Há algo aí que falta contar...

O Homem das Luvas também tem muito que se lhe diga, parece-me. Mas ainda teve pouco tempo de antena para eu entender o que se passa.

Resumindo, estou a gostar muito. Sei que escreves capítulos enormes, mas não me importo de os ler. Posso é demorar um pouco mais em cada actualização. Mas garanto-te que vou continuar a acompanhar. Gosto da tua escrita detalhada e de todo este novo mundo sobre o antigo que criaste. Espero ver mais. Gostei muito ;)

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Mensagem por Moggo Seg maio 28, 2012 12:13 pm

Então sempre vieste! XD

Ainda bem que gostaste da premissa (e das personagens, a julgar por aquilo que estou a entender.) Depois de ler aquilo que escreveste sobre não gostares muito de histórias no futuro, fiquei com medo que isto não fosse o teu género.
Sobre a tua pergunta, não acho que estarei a spoilar muito se disser que sim, humanos irão aparecer. Não para já, mas iremos definitivamente ter algumas secções dedicadas a eles. E para tirar esta dúvida, porque não me parece ser algo que valha o mistério, sim, o pai da Emma está mesmo doido. Mais detalhes sobre o que se passou irão ser dados, mas não há nenhum segredo envolvido.

Para o resto das tuas divagações, a minha boca é um túmulo. Sorry :P

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Mensagem por PandoraTheVampire Seg maio 28, 2012 12:57 pm

Ah pois então claro que vim! Disse-te que já o pretendia fazer n'O Falecido e agora que "começaste de novo" era a minha oportunidade de não ficar perdida no meio de tanto texto :p Sim, até agora são todas do meu agrado. Na verdade acho que mesmo as personagens más que vás criar (porque suponho que haverá algum antagonista) eu irei gostar delas... dás características identificáveis às personagens que nos fazem gostar delas. Ah pois, eu sei que disse isso. Mas o "futuro" da tua história não tem nada a ver com aquilo que eu queria dizer. A tua história, mesmo sendo no futuro tem características do passado. Por exemplo, os dirigíveis, os fatos/vestidos. Por isso gosto muito! E mesmo que fosse um futuro completamente robótico e informatizado lia, se a história fosse boa o suficiente :p

Ahhh nice! Estava com essa sensação, se não não os terias recambiado para a lua, mas teria feito uma extinção brutal, parece-me. Ficarei à espera desse momento. Hmmm okay, então agora deixaste-me curiosa quando ao porquê dele estar louco. Mas ficarei também à espera desse momento.

Já calculava que a tua boca estivesse fechada a sete chaves xD

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Mensagem por Moggo Seg maio 28, 2012 2:23 pm

That awkward moment em que te dizem que provavelmente extinguirias a humanidade a não ser que ganhasses algo com ela existir...

Antagonistas, é claro que haverá. A história seria aborrecida até dizer chega, para mim que a escrevo e para toda a gente que a lê, se não existissem alguns, e não haverá falta deles. A Mia, que me serviu de cobaia durante a primeira versão de CdR, até engraçou com alguns mais do que eu teria desejado. Isso deve querer dizer qualquer coisa, embora não tenha a certeza de se diz algo positivo.
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Coração de Relógio  Empty Capítulo II

Mensagem por Moggo Ter maio 29, 2012 5:00 pm

Capítulo II - Primeiras Impressões


Bertha encontrava-se atrás do fogão, a mexer e equilibrar tachos e panelas com uma facilidade de malabarista, quando Emma entrou na cozinha e se sentou à mesa. Do alto da sua cadeirinha de bebé, Luce ria, batia palmas e bradava "Gilibaha!". Emma não fez caso dela, excepto para se certificar de que a tacinha de puré que esta tinha à sua frente não caía do tabuleiro. Para sujidade, bastava-lhe a confusão de água e lama que ela e Amelie haviam deixado na entrada. Por uma vez sem exemplo, Emma decidiu que se absteria de pedir a colaboração da sua hóspede nas limpezas. Esperar que esta saísse do chuveiro diminuiria o tempo de que dispunha para se arranjar antes da carruagem chegar.

- Que tal é a moça? - inquiriu Bertha, movendo-se entre o fogão e a despensa e detendo-se quando a chaleira que deixara ao lume começou a apitar e lançar vapor. Embora se encontrasse bem no centro do calor da cozinha, nem suor nem traços de rubor marcavam presença na sua face larga. As marcas gravadas na pele da caseira tinham outra origem. Bertha jurava que a pele que a cobria era a original. Se isso correspondia à verdade era um tema sob discussão, mas a jovem concedia que precisasse ela de dar uma idade ao rosto da outra, para cima de duzentos anos não seria uma estimativa descabida.

- Ela é uma verdadeira continental - respondeu, parando defronte do vidro verde que formava a parede ocidental. Mesmo com a chuva a bater nele, ela conseguia escutar a água que agitava a canalização da casa. Mesmo com a canalização a abanar numa coreografia que se diria estar a ser executada por esqueletos dançantes, ela era capaz de ouvir Amelie cantar, com uma voz magnificente e melódica e melíflua que provocaria arrepios e lágrimas na alma mais empedernida. - E uma aspirante a rouxinol. E antes que me esqueça, se quiseres partilhar as tuas memórias de guerra, ela está interessada. De algum modo, a Amelie conseguiu crescer com o tio Harold e permanecer convicta de que os Criadores eram feitos de flores e purpurinas e maçapão, e eu sei o quanto adoras corrigir noções como essa.

- Heh, como se! - fungou Bertha. - Mas esperavas outra coisa, tendo ela vindo do continente?

- Eu, tu e os meus pais viemos do continente também - contrapôs Emma. E eles não tinham nunca agido como continentais. Bertha era indiferenciável de um craduense nascido e criado na cidade, e o seu pai havia sido instantaneamente adoptado pelos locais; Cráduma tinha a sua quota de doidos de estimação, mas antes da chegada dele, faltara-lhes um com as idiossincrasias de Walter Hanover. Da sua mãe ela também nunca ouvira ser feito reparo, possivelmente por costumar ser do conhecimento geral que esta guardava armas em casa e sabia como as usar. - Nós não somos…tudo o que ela é.

- Tu foste criada aqui. Eu e o teu pai viemos da Ilha que Afundou. A tua mãe veio de onde veio. - Emma conseguiu esquivar-se a um golpe de colher de pau, mas não à careta que a caseira fez. Se confrontado com ela, um homem adulto ter-se-ia visto reduzido a lágrimas. - Não me agrada que estejas a julgar uma moça que mal colocou o pé em terra. Tem vergonha, Emma Hortense. Os teus pais podem ter tido outras prioridades no respeitante à tua educação, mas a minha confessadamente desgastada memória recorda que te ensinei a usar de boa vontade para com os outros, até esses outros te fornecerem motivos fortes para fazer o contrário.

- Se eu usar de demasiada boa vontade, arrisco-me a deixá-la com a muito errada impressão de que estou a gerir uma caridade. Além do mais, tu sabes que esta é uma péssima altura para ter alguém de visita aqui - ripostou Emma. Era difícil dizer se ela teria prazer em acolher Amelie se as circunstâncias fossem distintas, mas não havia mal em permitir que a caseira o pensasse. - Eu vou estar ocupada.

- Pessoas que gerem caridades tendem a ser mais caridosas que o máximo daquilo de que és capaz, pelo que duvido que ela fosse pensar isso. Quanto à escassez de tempo e disponibilidade, não creio ser preciso relembrar-te de que se tivesses pensado melhor, não terias esse problema.

- Que gentil da tua parte dizer isso. Que seria de mim sem o teu apoio moral. Luce, pára! - silvou ela, ao ver a sua irmãzinha insistir em fazer carantonhas que esta sem dúvida acreditava serem cómicas. Luce imobilizou-se, com uma mãozinha gorducha a apertar o bibe e o lábio inferior a tremer. Emma soltou um suspiro resignado e foi até ela. Com cuidado para não se sujar a si própria de papa, ela levantou a bebé da cadeirinha e sentou-a sobre a mesa. Luce riu e soprou-lhe um beijo, deliciada, mas ela estava demasiado focada em Bertha para o notar. - Seja como for. Eu preciso de sair dentro de pouco. Os Radley esperam-me para jantar, e ainda tenho de me lavar e vestir.

- Ah - disse Bertha, e Emma sentiu-se impressionada por a outra ter sucedido em em colocar litros de desaprovação num único som suspirado. - O que deseja aquela harpia discutir contigo?

- Claritia Radley não é uma harpia, Bertha.

- E o filho dela tem os parafusos no sítio, e tu ponderaste devidamente a decisão de casar com ele.

- Bertha...- começou Emma. O seu estômago apertou-se, como não era anormal acontecer quando tocavam naquele assunto. Bertha estivera com a sua família desde antes de ela nascer. Bertha acompanhara o seu pai de preferência a permanecer em Danebre. Os primeiros sons na memória dela eram, por ordem crescente de clareza, o da sua mãe a cantar-lhe sobre diamantes, o bulício na oficina do seu pai, e o de Bertha a barafustar porque ela entornara caldo no seu vestido costurado com tanto esmero. Bertha conhecia-a. Mas Bertha era incapaz de ver que quando ela tomava uma decisão, esta era definitiva. - Eu ponderei, acredita. E ainda que não tivesse, tenho dezoito anos. Sou uma adulta.

- Tu és uma criança que não sabe nada da vida, é o que és. Espera uns anos e concordarás comigo.

- A rainha-mãe ascendeu ao trono com quinze anos! Embora não coloque em causa que tu sabes mais sobre o que na altura se passou, as decisões dela não foram contestadas por razões de idade.

- E eu não posso deixar de notar que não estás sentada num trono, moça. Ou que não estás a negar que o rapaz tem problemas. Ou que o teu ponderar mais se assemelha a optar pela saída mais fácil.

- Talvez por ser isso o que estou a fazer? Na situação corrente, estúpida seria eu se colocasse a mim própria mais entraves que aqueles com que a casualidade semeou o meu caminho. - Emma recolocou Luce na sua cadeirinha e virou-se para enfrentar a caseira. Ela respeitava a opinião de Bertha, mas era facto incontornável que esta era proveniente de outro tempo. Debaixo das rugas e cicatrizes havia uma estrutura de tungsténio e ligas de aço, e uma mentalidade sobrante de uma era em que o mundo funcionara diferentemente. - E porque haveria de negar que o Zeph é um lunático? O meu pai também o é. A diferença entre eles dois é que um se encontra a quilómetros de distância, preso numa cela de paredes almofadadas, e o outro é o meu melhor recurso para resolver a confusão com que o primeiro me abandonou. Zeph Radley é um partido perfeitamente aceitável e indigno de recriminação.

- A fortuna da família dele é partido aceitável. O moço só o é porque acontece que ela está agarrada a ele. - Emma resistiu à tentação de fazer notar que a razão pela qual Claritia Radley a desejava para nora estava também longe de ser pura. Hanover era um apelido sem títulos que se lhe encontrassem acoplados, ou uma fortuna que os seus detentores pudessem chamar sua. Mas ela era a sobrinha do Relojoeiro, e se em Cráduma esse era um facto que a pequenez e familiaridade do meio dissolviam em termos de importância, no continente tratava-se de um que abria portas. - Não lhe tens afeição de espécie alguma, e duvido que ele tenha as engrenagens suficientemente oleadas para a ter por ti.

- Os meus pais amavam-se. - Vorazmente, intensamente, como chamas destinadas a arder brilhantes e a extinguir-se de seguida. - Vê quanto bem isso lhes trouxe. Porque quereria eu tentar imitá-los?

- O que aconteceu aos teus pais não vem ao caso. - A água cessara de correr no andar de cima, embora não no exterior, e o passarinho pipilante calara-se enfim. Aquela era uma boa altura para se levantar e se desculpar com ir avisar a sua prima que esta se arriscava a encontrar aranhas no sótão. Emma estava certa de que bicheza faria Amelie saltar para cima de cadeiras, e o exterminador que ela contratara na semana anterior não viera ainda tratar da infestação. - Lidar com isto da maneira que estás a lidar, como se não se passasse de um negócio, não é base estável para nenhuma relação. Já para não mencionar ser antinatural. Tu pensas, moça, mas estás a pensar com a parte errada.

- Não acredito - disse Emma, abandonando por momentos o seu plano de fuga - que acabo de ouvir isso vindo de alguém a quem um íman ficaria preso na testa se lhe atirassem com um. Parte daquilo que somos nasceu numa bancada de trabalho, e tu usas antinaturalidade como argumento? Para não referir que não tenho alternativa a pensar só com a cabeça. O meu Relógio é defeituoso, lembras-te?

- Um dia - resmungou Bertha, abanando a cabeça - irás sentir raiva por eu não ter apertado contigo mais do que estou a apertar agora, vai por mim. Mas trata-se da tua vida. Longe de mim dizer-te o que fazer. Apenas sê cautelosa. Os Radley mal acabaram de chegar, e sabe-se lá o que querem contigo.

- Ninguém te diria uma declarada não-craduense, a avaliar pela opinião que tens de forasteiros - notou Emma, antes de prometer, com total sinceridade: - Mas serei, se isso te faz sentir melhor. - De muito a podiam acusar, mas nunca de falta de cuidado. Ela vivia a precaver-se. - Agora, se me dás licença, vou subir e garantir que a Amelie não derrubará a casa aos gritos quando se deparar com um rato.


Quando Emma chegou ao andar de cima, Amelie encontrava-se já seca e vestida, e não estava a gritar, embora se encontrasse no processo de executar uma série de outras acções findas em "ar", entre elas rosnar, bufar, pular, reclamar, puxar e rezingar. Até onde era possível descortinar algo do redemoinho de Amelie, pó e peças de vestuário, esta estava envolvida num combate sem tréguas com a fechadura de uma das muitas malas que arrastara escadas acima. A fechadura estava a ganhar.


- Estúpido, estúpida, estúpido! - exclamou a jovem, dando um soco na bagagem e, a avaliar pelo grito que de seguida soltou, magoando a mão. Resolvida a castigar a mala ofensiva, ela pontapeou-a.

- Talvez a fechadura esteja emperrada? - sugeriu Emma, do umbral da porta. Amelie fungou, sacudiu um caracol de cabelo húmido da frente dos olhos e renovou o ataque. - Aplicar óleo deverá resolver.

- Esta - declarou Amelie, num tom mais apropriado ao baptismo de embarcações ou à proclamação de decretos reais - é uma mala Caia Daire. Colecção de Primavera. Custou-me os olhos da cara. Elas não podem emperrar, os folhetins publicitários da companhia garantem que duram séculos ou mais!

- Eu aconselhar-te-ia a exigir que te reembolsem os olhos. Essa mala está obviamente emperrada. Se preferires levá-la a um serralheiro em vez de pedir óleo à Bertha, há um excelente na rua Variómetro.

- Ela não está emperrada.

- Se tu o dizes. - Emma deu de ombros. - Vim informar-te de que há uma forte possibilidade de apenas ir estar de regresso depois do anoitecer. Não entres em pânico se ouvires ruídos no andar de baixo. Se vires um rato, relaxa. Há uma pá na cave e spray de desinfestar no armário da despensa.

- Entendido - disse Amelie, fazendo uma continência que tremeu à menção de ratos. Emma deitou-lhe um olhar duvidoso e retirou-se, deixando-a livre para dar seguimento à luta com a fechadura. Ela não se encontrava perra. A sua combinação, zero zero zero zero, pois Amelie tinha má memória para números e má imaginação para cifras, simplesmente não conseguia abri-la. Onde devia ouvir-se um clique a indicar que a destrancara, havia só um crac de metal a reclamar por estar a ser forçado.

Amelie produziu um aborrecido “Urgh!”. Como é que aquilo lhe fora acontecer? A recusa da mala em abrir era especialmente irritante por ter sido nela que guardara o vestido de tiras de seda que comprara antes de abordar o Carlada. Ela gostava daquele vestido - ela gostava de todos os seus vestidos, mas isso não vinha ao caso. O importante era que queria tê-lo e estava impedida de o ter, assim como aos sapatos e romances de capa dura que empacotara junto com ele. Até encontrar um modo viável de arrombar a mala, teria de ficar sem tudo isso. Ela sentou-se na cama, derrotada.

Pelo menos, começou a rapariga a ruminar após deitar um olhar avaliador ao que a rodeava, podia consolar-se com o conhecimento de que não permaneceria ociosa até o dilema se solucionar. O sótão precisaria de sofrer uma revolução decorativa, isso fora evidente a partir do momento em que nele se instalara. Ele conseguia ser mais sombrio que o resto da casa, e embora fosse perceptível que o haviam limpo recentemente, ninguém se dera ao incómodo de abrir a janela para o deixar arejar, ou acender um incenso que purificasse a atmosfera bafienta. A prometida clarabóia precisaria de mais que ser oleada para a conseguir abrir, e a única janela era tão minúscula que o musgo e líquenes que haviam principiado a crescer na armação cobriam o vidro quase por inteiro.

- Hmm…- murmurou ela, levantando-se e batendo no queixo com o dedo indicador. Dar à divisão um toque de cor era a primeira melhoria que se impunha efectuar. Passar uma esponja húmida pelo vidro era a segunda, mas uma esponja figurava na lista de coisas que não empacotara. Amelie não queria usar a que encontrara na casa de banho, por ter a sensação de que Emma objectaria a tê-la a utilizar uma esponja que tinha o seu nome escrito em cima. Usar para se lavar e secar uma escova e toalha que tinham, respectivamente, "Emma" gravado na pega e "Emma" bordado no canto inferior já a fizera sentir abusadora. Amelie não queria criticar, mas tal grau de possessividade era quase arrepiante.

- Eu também teria uma personalidade azeda se o meu cabelo fosse igual ao dela - confidenciou ela ao espelho na parede, cuja presença agradecia. Reveses eram suportáveis desde que lhe dessem o seu reflexo. - Talvez, se a conseguisse fazer parecer fantástica, ela se animasse um pouco. Pensando…

Amelie conjurou uma imagem tridimensional da sua prima e mordeu o lábio. O cabelo era algo com simples solução, e colocá-la em roupas alegres e adequadas à idade que tinha, em vez de trapos tristonhos mais apropriados a uma mãe de família viúva, far-se-ia num instante. A cara era a única parte para a qual não havia remédio. Talvez, se lhe colocasse um sorriso em cima, outros fossem ver para lá das suas imperfeições, mas Emma não lhe dera indicações de alguma vez sorrir, o que ela considerava lamentável. Sorrisos faziam uma pessoa parecer uma pessoa. Pessoas gostavam de pessoas que sorriam. Emma era séria e sem graça, e isso dava-lhe más vibrações.

- Precisas de alguma coisa, moça? - Amelie levou uma mão ao peito como se o seu Relógio tivesse falhado um batimento. Outro rosto acabava de surgir ao lado do dela na superfície do espelho.

Amelie virou-se, deduzindo que a velha que a surpreendera devia ser a tal Bertha. Problemas havia-os, começando pela mala que não abria e acabando em como Emma seria tão mais agradável se não tivesse a aparência de alguém que fora amamentado com vinagre, mas ela não via razão para maçar a mulher com isso, quando ela mal acabara de chegar e ainda nem se instalara devidamente.

- Está tudo maravilhosamente maravilhoso - disse, abrindo o rosto no maior sorriso que os seus lábios eram capazes de formar sem criarem brechas no processo. - Bertha, não é? A Emma falou-me de si.

- Grumphf! - retorquiu Bertha. Bertha, entendeu Amelie de imediato, também não era muito dada a sorrir. Eram todos assim? Era Cráduma uma cidade povoada na integridade por gente para quem um aceno era o mais elevado patamar de intimidade? Pelos Criadores, isso soava depressivo. - Quando acabares aqui, vem para baixo. Há sopa à tua espera. E chá, se te puder interessar numa chávena.

- Se pode! - exclamou a jovem. Comida e bebida soavam-lhe optimamente, depois de dias a não conseguir aguentar no estômago nem uma nem outra. Havia uma campainha de alarme a tocar no fundo dos seus pensamentos, mas ela não lhe prestou atenção. - E o meu nome é Amelie. Ou Mel.

- Eu sei, moça. Não demores, ou a sopa esfria. - Amelie deixou de sorrir.

Ver um sorriso a abandonar um rosto que se encontrava mal habituado a não vestir um era um pouco como ver uma serpente em mudança de pele. O que havia debaixo dela podia ser bonito, mas olho nenhum veria para além das escamas gastas e restos baços daquilo que fora algo glorioso.

- Amelie - repetiu ela, com uma nota de persistência. - Amelie, não "moça". Amelie.

- Amelie - repetiu Bertha, encarando-a de frente, como se estivesse a ver através dela e a apanhar um olho cheio da sua alma. Amelie balançou-se de um pé para outro, nervosamente. Tique-taque, disse o seu Relógio, e a rapariga apercebeu-se de que tremia. Princípios de zanga mexeram-se no seu peito e mente, pois Bertha estava a virar-lhe as costas, e pessoas não lhe viravam as costas. Na sua mente, mil engrenagens giraram em uníssono, suspensas sobre um chão espelhado, e todas eram escarlate.

Tarde demais, Amelie recordou o que mais deixara na mala. A sua mão voou-lhe para o peito.

- Bertha? - chamou ela, fazendo a caseira deter-se. - Acabo de me lembrar, há algo que preciso de ter. Um regulador. É um instrumento de Relojoeiro que parece uma caixa e serve para estabilizar Relógios em operações, e assim. O tio Walter tem de ter algo semelhante na sua oficina, ou algures…

- Eu sei do que estás a falar - interrompeu Bertha, acenando para consigo. - Passei anos ao serviço de Relojoeiros, se bem te lembras. O Mestre Walter deixou de exercer quando veio para cá, mas a maior parte das suas ferramentas ainda se encontra na cave. Podemos ir procurar isso mais tarde, embora não esteja a ver que utilidade poderias dar a algo assim. Tencionas abrir o Relógio de alguém?

- Não, não - riu-se Amelie. Se o seu riso tremia mais do que devia, a outra não mostrou notá-lo. Era pelo melhor que assim fosse, pois detestaria ter de se explicar mais elaboradamente. Havia um quê de embaraçoso, para não dizer sinistro, em admitir que um regulador a ajudava a não se zangar, e que isso era algo desejável porque coisas más aconteciam quando ela se zangava. - Eu só…preciso dele.

- Precisas dele - repetiu Bertha. Ela acenou com vigor. - Anda para baixo, então, e veremos se damos com um antes do chá estar bom para regar plantas. Podemos até conversar enquanto procurámos; a outra moça disse que estavas interessada em ouvir sobre as minhas experiências com os Criadores.

- Oh, sim! - disse ela, o seu sorriso renascendo. - Isso seria absolutamente maravilhoso.


Emma colocou o pé fora da carruagem, tomando cuidados extremos para não permitir que um único salpico de lama lhe maculasse o sapato cor de pérola. Seguiu-se outro pé, que ela posicionou tão cuidadosamente como fizera com o primeiro. Passo após passo, a rapariga dirigiu-se ao portão. A ventania do começo da tarde amainara, reduzida a uma brisa, e a chuva parara. Mesmo assim, ela firmou as mãos na base da sua sombrinha, afrouxando o aperto apenas após chegar à porta da casa, em frente da qual se deteve. Antes da chegada dos Radley, há pouco menos de um ano, o colosso de pedra havia sido um farol que se encontrara em ruínas desde a guerra. Olhando-o após Claritia lhe ter deitado a mão, ninguém o adivinharia. Emma compararia a casa a uma fortaleza, se não julgasse que fortalezas tendiam a não se encontrar rodeadas de sebes aparadas e fontes ornamentais.

- Boa noite, Yasemin - disse, quando abriram. A criada recolheu a sua sombrinha e casaco e retirou-se para os ir pendurar, após a informar de que os patrões a esperavam na sala. Era estranho. Ela fizera o ensino obrigatório junto de Yasemin, e dentro de dias esta tratá-la-ia por patroa. Bertha rir-se-ia na sua cara se lhe fosse sugerido que fizesse algo semelhante. Bertha passava mais tempo a dar-lhe ordens a ela que o contrário, independentemente de quem tinha quem na folha de pagamento.

Emma encaminhou-se para a sala. Como o resto da casa dos Radley, ela passava a impressão a impressão de ter sido decorada com recorrência à máxima de “Se é folhado e florido e insípido, e com uma aparência antiquada que rasa o mau-gosto, vai dentro.”. Zeph estava lá, a picar as crostas deixadas no lugar de borbulhas recém-espremidas, e a comportar-se como alguém que nunca tivera contacto directo com outras pessoas. Zeph. Quase tão rico como a rainha, e quatro vezes mais desequilibrado que uma tina cheia de macacos na beira de um precipício, esse era ele.

Se o seu noivo fosse são e o apelido dela não fosse Hanover, as suas hipóteses seriam nulas. Como era, as únicas jovens casadoiras que o quereriam eram precisamente as que Claritia apenas aceitaria como noras se primeiro lhe arpoassem o Relógio. O que a sua futura sogra dizia aceitável e inaceitável era o começo e o fim de todas as decisões que na família se tomavam. Não havia um senhor Radley. Emma não era capaz de decidir se preferia correr o risco de perguntar o que fora feito dele, ou passar o resto da vida crente de que Claritia enterrara os seus ossos e Relógio num baldio.

- Emma, querida. - Claritia era outra apologista do tratamento por querida, mas a passo que Ermelinda Amanil sucederia em fazer a palavra soar natural se não a repetisse constantemente, Claritia proferia-a sempre de uma maneira que trazia à mente imagens de pegajosas gotas de açúcar caramelizado a escorrer ao longo das letras. Era difícil dar uma idade à mulher. Emma deduzia que esta devia andar à volta da idade que a sua mãe tivera aquando da sua morte, mas a quantidade de pó-de-arroz no seu rosto não lhe permitia afirmá-lo com segurança. - Ainda bem que pudeste vir. Senta-te, senta-te.

Emma sentou-se junto de Zeph. Vendo-o, era difícil tomá-lo por possivelmente demente e autor de comportamentos que a mais ninguém lembrariam. O seu aparente desconhecimento do significado de higiene era um problema, e a sua pele encontrava-se coberta com marcas de acne, mas nenhum desses factores tornava-o notoriamente diferente de qualquer outro rapaz da sua idade. O seu modo de andar era desconjugado e dava a impressão de que os seus membros se moviam em diferentes sentidos, e os seus tiques eram legião, mas era possível ignorar isso com algum esforço.

Era quando a sua boca se abria que quem se encontrava na sua presença entendia haver com o Relógio dele algo de errado que transcendia simples impossibilidade de o controlar. Falar com Zeph era como falar com Luce. Era evidente que não podia responsabilizá-lo pelo facto. Mas conceder que não havia nada que pudesse fazer para o emendar não queria dizer que não a inquietasse saber que qualquer conversa que procurasse ter com ele seria unilateral. A única conversa que ele alguma vez tentara iniciar com ela era a razão de se terem conhecido, e essa fora um paradigma do surrealismo.

Não era sequer certo se Zeph estava ao corrente de se irem casar na quarta-feira seguinte. Era certo que ele fora informado do facto, mas isso não significava muito. Quando lhe fora perguntado se o satisfazia tê-la como noiva, Zeph balançara a cabeça no que habitualmente se poderia interpretar como confirmação, antes de concentrar a sua atenção naquilo que julgando pela intensidade do olhar que lhe dedicava, tinha de ser o mais interessante saleiro na história do mundo.

Emma não podia afirmar que encarava com muito mais entusiasmo que ele a perspectiva de ir casar, mas fazê-lo iria colocar em ordem as suas finanças, se nada mais. O seu pai permaneceria em Skagard até os seus parafusos se encontrarem menos dispersos. Tendo em conta que eles sempre o tinham estado, era duvidoso que o fosse rever antes de Luce entrar no ensino obrigatório. Ele e a sua mãe haviam abandonado Danebre com românticos ideais de amor e uma cabana, e deixado para trás tudo excepto o básico. Emma contaria com actos impensados desse género da parte do seu pai, que nunca primara pela sua capacidade de se precaver, mas da sua mãe ela esperara…melhor. E estando os dois mortos ou internados e ela endividada, Zeph o Doido era a sua luz ao fundo do túnel.

- Tu não estás a usar maquilhagem - comentou Zeph, sem a olhar. Oh, a sua cara encontrava-se directamente na linha de visão dele, mas os olhos do seu noivo observavam o ar entre eles dois, como se houvesse uma parede de vidro a separá-los e estivesse a tentar espiar nela o seu reflexo. Quando ele não reagira a tê-la a sentar-se junto dele, Emma assumira que adormecera de olhos abertos. Não seria algo inédito; na sua primeira visita, Zeph estivera a cochilar durante coisa de um quarto de hora, antes de Claritia dar por isso e o picar com um garfo de peixe para o obrigar a despertar. - Vespas.

- Então, Zephy. Sê um cavalheiro e não maces a Emma com disparates. Lauresssssa! - Emma saltou um pouco na sua pele com o grito repentino. Uma outra criada apareceu a correr, e Claritia chamou-a para junto de si com um imperioso gesto de mão. - Traz-nos algo para beber, querida. Já!

E se Zeph era uma luz, pensou Emma, Claritia era o comboio ao qual ela pertencia.


- …então disse-me o comandante, “Wallace, em verdade te digo, hoje pintaremos esta cidade com as cores de Maraura”. Isso foi quatro anos antes de finda a Terceira Guerra. Ela ainda não era a Primeira Rainha na altura, caso estivesses na dúvida. Seja como for, o comandante de pelotão está a sair-se com essa e a posar na amurada com toda a pomposidade que essa tua cabeça é capaz de imaginar, moça, e então vem uma das unidades móveis deles pelo mar adentro, pelo mar adentro, estou a dizer-te, e o filho de suíno empoleirado em cima dela explode a cabeça do sujeito com um lança-mísseis. Twash, foi assim que soou, como quando se esmaga uma maçã…- Bertha interrompeu-se, deixando no ar uma pausa prenhe, que se confundiu com os fios de fumo exalados pelas chávenas na frente dela. - Mas tu estás pálida, moça. Precisas de mais chá? Ele não está muito quente, penso.

- Amelie. E sim, a temperatura está ideal, mas não preciso de mais chá. - Após conferir que a caseira se virara para mexer na panela de fosse o que fosse que esta estava a cozinhar, Amelie pegou na sua chávena três terços cheia e levantou-se, silenciosamente. Ainda mais silenciosamente, despejou-a num vaso de flores murchas. Emma avisara-a para não aceitar os chás de Bertha, mas esquecera-se de a informar de que eles continham arsénico. - Também penso que já não preciso de ouvir mais.

- Essa imagem foi demasiado forte para ti? Tão sensíveis, estas jovenzinhas de hoje em dia. Tsk.

- Não é sensibilidade. - Excepto que era. Amelie era sensível a falarem-lhe de cabeças a explodir.

- Eu tenho muitas outras histórias sobre eles, se preferires algo mais manso. A batalha de Cráduma foi um dos pontos altos da minha vida, mas ela tem outros. Gostarias de ouvir sobre o tempo em que fui a guarda-costas pessoal do Grande Masaru? Ou sobre a Primeira Rainha? Pareces ser do género que prefere histórias sobre realeza, embora verdade seja dita, ela não tenha sido esse tipo de rainha…

- Você conheceu-a? - perguntou a jovem, curiosa. Astarte tivera três rainhas desde o Êxodo; Maraura, que morrera há mais de um século, Eldora, que aos cento e tantos anos continuava, para espanto de muita gente, viva, e Maud, a actual monarca, que a acreditar naquilo que ela ouvira a vida toda era uma “Fedelha trinca-espinhas a quem qualquer dia de tanto abanar a cabeça só pelo prazer de ser contrária, ainda lhe cai a coroa”. - Dizem que no seu tempo, ela era a mulher mais bonita do mundo.

- Não saberia dizer. Raramente a vi não estando coberta de tripas ou cinco dias de sujidade. Depois de ganharmos, passei décadas nas Américas, e só regressei a Astarte anos depois da sua morte. Mas ela foi, julgando por tudo o que vi e ouvi, uma monarca decente, embora provavelmente não tão capaz como era como senhora da guerra. Que importa o resto? - Amelie estivera a segurar a borda da mesa, cheia de receio de ir ser presenteada com outro sangrento relato, e acenou energicamente ao verificar que se afastavam desse desagradável território. - Aqui. Podes tirar um, se quiseres.

- Obrigada. - Amelie examinou com suspeita a travessa de biscoitos que a caseira acabava de pousar defronte dela, e mordiscou a pontinha de um deles. Para sua surpresa, eram deliciosos. - O que a levou a ficar tanto tempo nas Américas? Tinha lá gente conhecida?

- Eu não tinha ninguém que conhecia naquele continente. Daí ter lá ficado tanto tempo. - Bertha quase sorriu. Amelie estava a vigiar o seu rosto, certa de que cedo ou tarde ela precisaria de esboçar um sorriso completo. - Depois de ver o que vi e viver o que vivi, afastar-me pareceu prudente. Só retomei o contacto com o teu pai e tio após voltar. Como está o Mestre Harold, a propósito?

- Unf! - respondeu a rapariga, com a boca cheia de biscoito. - Unf…cof…ah…bem.

- Eu correspondo-me com ele desde que aqui estamos. Os teus tios não aprovavam, sobretudo a dona Elysa, mas de que serve ter um Relógio construído para ser eterno se te fazes escrava da vontade alheia? Não o tolerei dos Criadores, e certamente não o toleraria de quem vi sair da mesa de trabalho. Sempre me perguntei o que seria feito dele depois de partirmos. Tínhamos por hábito apostar quanto tempo se passaria até um dos seus projectos afundar no mar a Cidade Flutuante ou mandar Danebre pelos ares. - A caseira apoiou o queixo sobre a mão, ignorando Amelie enquanto esta procurava não se afogar na bola de massa que lhe ocupava a laringe. - Em vez disso, lo, uma filha.

- Uma filha - concordou Amelie, com crescente desconforto. Muda de assunto, ordenaram o estrépito de peças e o exalar de foles dos quais o seu Relógio fazia pensamentos. - Diga-me, passa-se algo de errado com a Emma? Porque ela não me pareceu feliz ao receber-me. Foi algo que eu disse ou fiz?

- …e o curioso é que embora as minhas cartas tenham deixado de receber resposta há algo como um ano, o Mestre Harold raramente te mencionava, nem quando ainda comunicávamos. Saber que virias apanhou-me tanto de surpresa como apanhou a tua prima. E não…- A caseira pegou-lhe na mão, com uma expressão indulgente que contrastava agudamente com a força com que a apertou. Amelie teve de se segurar para não contorcer os dedos. - …não és tu. Ela sempre foi assim, mesmo em criança. E com o casamento tão próximo e os nervos à flor da pele, é evidente que a moça irá descarregar sobre quem acontecer estar à mão. - Amelie abriu a boca, exibindo o biscoito mastigado que estivera prestes a engolir, e entendeu que estava a ter dificuldade em tornar a fechá-la. - Ela omitiu essa parte no seu discurso de boas-vindas, estou a ver. Típico.

- Uhm, uhm…- conseguiu a rapariga fazer sair. Emma não dissera nada a respeito, o que a fez sentir-se ligeiramente ofendida. Avisá-la de algo importante como um casamento parecia-lhe mais vital que partilhar a localização de quartos e presença ou ausência de lareira. - Isso é…fantásticabuloso.

Bertha fez o tipo de cara que ela teria feito se tivesse sido obrigada a terminar o seu chá.

- Não quando a razão de ela se ir casar é a que é. Ela não o ama. Duvido até que o aprecie. - Porque Bertha se movera para ir tirar um frasco do armário e o rosto de Amelie se encontrava demasiado hirto para que os seus olhos a acompanhassem, o ponto de ar que ela fitava, embasbacada, já não era o ponto correspondente à cabeça da caseira. - Aqui, quem não casa para evitar a penúria casa para subir de posição, e quem não casa por nenhuma dessas razões casa para agradar a parentes ou para matar boatos de terem outras preferências. Há até raridades que descobrem o Princípio de Sincronia. Matrimónio à medida, e vejo pela tua cara que não aprovas que assim seja. - Bertha rodou a tampa do frasco e começou a enchê-lo com os biscoitos restantes, enquanto resmungava. - Faz duas de nós.

Ah, então o rosto dela realmente ostentava a expressão de alguém a quem não só se enfiara uma trave pelas narinas, como se ateara fogo às roupas e urinara na bebida.

- E a Emma está a casar-se porque…- Por alguma razão, não lhe parecia que Princípio de Sincronia fosse ser a resposta. Aqueles que encontravam a sua outra metade, a pessoa cujo Relógio batia em sintonia com o seu, tendiam a mostrar-se mais felizes que Emma. Idem para apaixonados normais.

- Porque se trata de algo socialmente aceitável, porque ela se encontra com dificuldades financeiras, e porque a tua prima tem o alcance emocional de um dos primeiros construídos, os sem-Relógio. - Bertha parou de falar pelo tempo de fechar o frasco e o arrumar, o que deu a Amelie tempo para digerir uma pequena dose daquilo que terminava de escutar. - Suficiente explicação?

- Não…exactamente. Quando é o casamento, afinal de contas?

- Na próxima quarta, Dia do Êxodo. Ela provavelmente irá acabar por convidar-te. Provavelmente.

- Bem, isso seria nada mais que adequado. Estou a ver que esta foi uma fantástica altura para vir aqui.

Pela primeira vez desde que a conhecera, Bertha mostrou-se desconcertada.

- Fantástica, moça? Confesso que não te estou a seguir. - Amelie. Amelie, Amelie, A.M.E.L.I.E.

- Mas não é óbvio? - Amelie não gostava de ter a caseira a encará-la como se ela tivesse acabado de lhe arrancar os olhos com uma colher. Assim sendo, virou-lhe a cara. - A Emma precisa de ajuda, e eu sou perfeita para lha dar. A palavra “prestável” é praticamente um dos meus nomes do meio. Assim que tivermos uma conversa séria, tratarei de a chamar à razão! Comigo por perto, ela não irá pensar em sacrificar romance e emoções em nome do utilitarismo. É maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso!

- Estou…a ver. Mais chá? - A jovem anuiu, mal registando as palavras. A sua cabeça imaculadamente penteada pensava a todo o vapor. Ela julgara não ir divertir-se em Cráduma, mas a cidade acabava de a presentear com algo melhor que divertimento: um projecto. Nomeadamente, o projecto fazer-Emma-ver-a-luz, e que só tivesse conhecido a sua prima nesse mesmo dia era irrelevante. - E aqui tens.

Sem prestar atenção àquilo que fazia, Amelie levou a chávena à boca e bebeu.


A escuridão que se prensava na cúpula de vidro que servia de tecto ao hall central do Ómicron caíra há mais de duzentas horas. Dorien Maiken deteve-se a caminho da saída do edifício e olhou para cima. A areia lunar que o vidro tinha como base conferia à cúpula uma cor leitosa que impedia a luz das estrelas de passar, mas aqui e além, era possível avistar-se o traço reluzente de um meteoro a ser consumido pela proto-atmosfera. Dorien sacudiu a cabeça e continuou a andar. A proto-atmosfera era uma pobre protecção para objectos de maiores dimensões, como a longa noite atestava.

Ela era uma resposta ao meteorito de Tycho. Este caíra e ceifara vidas, e isso fora terrível. Mas mais preocupante havia sido a resposta da população lunar; o meteorito fizera-os ver a instabilidade das circunstâncias em que viviam. Greves haviam alastrado, primeiro por Tycho e as bases em redor, depois pela Lua inteira. Elas não haviam ainda chegado em força a Mare Nectaris, mas mesmo ali as lâmpadas tinham sido desligadas em protesto. Era uma questão de tempo até virem as manifestações e pessoas acampadas nas ruas. Dorien sabia isso. Todos sabiam isso. A Lua sustinha a respiração, à espera de um sinal, um indício de que as suas preces eram ouvidas pelas altas instâncias. Tendo ela um conhecimento profundo de alguém que era uma alta instância por si só, Dorien desejava-lhes boa sorte. As preocupações dela eram mais mundanas que o eventual regresso da sua espécie à Terra.

Dorien abandonou o Ómicron e andou. O ecrã gigante fixado na divisória entre a baixa de Mare Nectaris e Nova Bruges encontrava-se tão escuro quanto o céu. Nos passados dias, ela encontrara-o ligado apenas à hora do noticiário. Os descontentes, que dir-se-ia estarem em todo o lado, não tinham pudor em privar o resto da Lua do seu entretenimento, mas eram humanos o suficiente para não lhe cortarem o acesso a informação. A isso tinham chegado, pensou ela, com desgosto. Era como se não estivessem todos do mesmo lado. Como se não fossem todos vítimas do Êxodo. Cento e sessenta e oito anos, e havia quem julgasse que o inimigo estava com eles em vez de em baixo, agisse de acordo e dificultasse a vida alheia enquanto o fazia. Vergonhoso, era o que era. Vergonhoso e frustrante.

Dorien nunca falhava em precisar de se reajustar quando passava uma longa temporada na baixa da base e regressava a casa para respirar o ar rarefeito. Nova Bruges era uma das zonas de Mare Nectaris onde o racionamento de oxigénio era muito levado a sério. Andando devagar e fazendo uma série de inspirações/expirações, ela avançou. O bairro ficava situado quase nos limites da base. Para lá das idênticas tigelas invertidas que eram a norma habitacional na zona, havia areia cinzenta que se estendia até aos baldios lunares. Lá, era impossível respirar, e o alcance do raio gravitacional que prendia as bases e os seus cidadãos ao chão era quase inexistente. Bolas de luz vermelha demarcavam a área para lá da qual era perigoso avançar-se, e Dorien respeitava os avisos.

O corpo deitado no seu sofá mexeu-se e grunhiu quando ela abriu a porta, mas não despertou.

Dorien apanhou uma lanterna-globo de cima da mesinha da entrada, pressionou o topo dela e esperou que a esfera começasse a espraiar luz embaciada antes de pegar no jarro de gardénias de plástico com quem esta partilhava a mesa. A sua filha regara-as por as julgar autênticas, como se flores reais fossem um luxo ao qual se podiam dar. Ela nunca chegara a livrar-se da água, e tendo em conta que as flores não a aproveitariam, era tempo de lhe dar outro uso.

- Lindsay! – silvou, aproximando-se da figura adormecida no sofá. Ninguém diria de Mikail Lindsay que este parecia um cientista ou engenheiro, ou alguém cuja vida era passada embrenhado em livros. Mas o mesmo podia ser dito dela, e isso não invalidava os factos. O único campo no qual Mikail era leigo era o da responsabilidade. - Lindsay. São quase dez horas. - Mikail, moreno e sólido e com o rosto de alguém vinte anos mais novo, e homem de ciência apesar daquilo que as aparências gritavam, falhou em ser trazido de volta à vida pelos seus cada vez mais fortes abanões. Dorien pousou a jarra e a lanterna, arregaçou as mangas e arrastou-o para o chão, tomando o cuidado de o pousar na pedra e não nas imediações do tapete. - Seja. Tu pediste! - exclamou, voltando a pegar na jarra e virando-a.

O efeito foi instantâneo. Mikail pestanejou, deu-se conta do que acontecia e rebolou para o lado, protegendo-se com o braço e sacudindo as gardénias. Se Dorien fosse completamente honesta consigo própria, ela teria de admitir que vendo-o assim, a cuspinhar e debater-se com flores artificiais, ele parecia fofo. Um tanto ou quanto fofo. Certamente não o bastante para o poupar ao discurso com que tencionava presenteá-lo, e absolutamente não o bastante para não o ir obrigar a pagar a lavagem a seco do sofá, mas o suficiente para a levar a dirigir-se à cozinha e voltar com um pano limpo.

Mikail grunhiu e passou-o pela cara quando este lhe foi oferecido.

- Isso foi completamente desnecessário, Maiken – reclamou ele, ainda com a cabeça enterrada no tecido enquanto se esfregava com vigor. – Um toque teria bastado.

- Eu tentei um toque. Vários toques – defendeu-se ela, colocando as mãos nas ancas e bufando como um gato furioso quando ele lhe atirou o pano para cima da cabeça. – Todos eles falharam em tirar-te da terra do transvin. Tens ideia de que horas são? Tens ideia de quantas vezes te tentei contactar? O que no mundo estavas tu a fazer, e o que aconteceu ao teu comunicador para não teres atendido?

- Uhrm. - Ainda um tanto ou quanto grogue, Mikail rebuscou os bolsos e tirou de um deles o quadrado de ecrã, sobre o qual passou um dedo. As suas sobrancelhas coseram-se juntas, e ele espreguiçou e bocejou. - São só dez para as dez, estás a reclamar de quê? A apresentação começa à uma.

- Dez para as dez da noite! – Isso sucedeu em captar-lhe a atenção. Mikail imobilizou-se, encarando-a primeiro como se tivesse entendido mal o que ouvira, depois como se não acreditasse no que ouvira e finalmente, como se estivesse horrorizado com o que ouvira. Dorien não lhe deu tempo para traduzir o horror em discurso. – Tu nunca pensas, pois não? Deixaste-me pendurada. Eu precisei de apresentar o projecto sozinha. Eu precisei de memorizar todos os teus cartões, as partes que deverias ter sido tu a tratar, a caminho da sala de conferências. Tu disseste que estarias no Ómicron antes do meio-dia!

- Tu…eu disse-te isso há um quarto de hora atrás!

- Tu disseste-me isso há doze horas atrás! Estás demasiado bêbado para ter noção do tempo? - Ele teve a decência de baixar a cabeça em sinal de arrependimento, o que a amaciou em certa medida, mas fez pouco para diminuir o seu ressentimento. O que mais a enfurecia era que devia ter contado com algo assim. Mikail não alterara uma vírgula na personalidade desde o seu tempo de cursista. Ele distraía-se durante projectos, deixava planos e esquemas espalhados, não conhecia os seus limites, e deixava para ela a tarefa de o puxar para trás quando se tornava claro que balançava à beira de um precipício. Ele deixava-a colérica e fazia-a penar, e Dorien suspeitava que um terço dos seus cabelos brancos se deviam à ansiedade de tentar prever como ele iria estragar as coisas da próxima vez.

Infelizmente, ela amava-o, e havia muito pouco a poder ser feito a esse respeito.

- Lamento, Maiken. Juro. Há alguma maneira de te poder compensar? Um jantar? Conhecendo-te como conheço, não paraste para merendar entre o fim da sessão de cumprimentar e apertar mãos e vir até aqui. Humanos precisam de comer, sabes? - Dorien revirou os olhos para ele.

- Não tentes ser engraçadinho. Se queres de facto compensar-me, começa por desimpedir o meu sofá e ir limpar-te. A Clariane deve estar quase a chegar, e a última coisa que ela precisa de ver é o seu pai ressacado no meio da sala. Tu recordas-te de que é a tua noite de ficar com ela, certo? - Claramente, esse era outro detalhe que Mikail falhara em manter presente. Ela queria desesperadamente gritar-lhe, mas as infra-estruturas de Nova Bruges não ofereciam muito no departamento de privacidade. Que os vizinhos escutassem aquilo a que continuavam a referir-se como sendo disputas conjugais, apesar de ela e Mikail se encontrarem divorciados há seis anos, era a última coisa que desejava. - Tão previsível. Mexe-te. Tenho um jacto para Mare Nubium à minha espera e um encontro ao qual não posso chegar atrasada. Se quiseres fazer algo útil, podes descongelar o jantar da Clar enquanto me arranjo.

- Um encontro.

- Sim, um encontro. – Ela suspirou. A desaprovação de Mikail era tão evidente que na mesma moeda podia ter reclamado em voz alta. Era um ponto em favor dele que não o tivesse feito, mas em certos dias, Dorien julgava ser milhares de vezes preferível que ele dissesse o que pensava sem rodeios, em vez de se restringir a fantasiar ataques de ciúme e comentários espertinhos, como certamente estava a fazer. Os seus vizinhos não eram os únicos a agir como se eles ainda fossem um casal. – Tira o cérebro de dentro da fossa. Não vejo o Charles desde o início do projecto, e…

- Charles? – Toda a mal disfarçada irritação que se estivera a desprender dele desde que “encontro” lhe saíra da boca desvaneceu-se tão subitamente como surgira. - Charles, claro que é com ele que te vais encontrar. Então o nosso tirano favorito foi colocado em Nubium? Faz sentido, com as greves…

- Crises e vapores. - Dorien cobriu a testa com a mão, sentindo uma enxaqueca formar-se. Que Mikail e o seu menos-que-popular pai adoptivo se odiavam não era algo do qual os dois faziam segredo, mas ela precisava de conceder que um deles tendia a ser mais subtil que o outro. - Não lhe chames isso.

- Porquê? Porque ele irá irritar-se caso venha a saber? O homem odeia-me desde a primeira vez que coloquei uma aliança no teu dedo, Maiken. Salvo cometer um crime contra esta suposta república, não há nada que eu possa fazer que o faça desejar banir-me para os baldios mais do que já deseja.

- Não te aconselharia a tentar comprovar isso. - “Suposta república” era uma facada imerecida. Mikail estava suficientemente por dentro do modo como as coisas funcionavam para precisar de saber que a Lua tinha de ter um Charles. A sociedade que ali haviam construído era uma que carecia de uma mão firme a mantê-la sob controlo. Presidentes iam e vinham, aparecendo-se e dissolvendo-se das mentes do povo assim que os seus mandatos e função eram cumpridos. Escolha era o que as pessoas diziam querer, mudança para melhor o que declaravam desejar. Assim, de quatro em quatro anos, um novo rosto ao qual chamar líder era-lhes dado. Mas estabilidade era aquilo de que as pessoas precisavam. Por essa razão, havia um Intendente Geral por detrás de cada presidente. Charles Maiken era o sexto detentor do cargo desde Bronislav o Pioneiro, e só a sua morte o desocuparia. Mikail tinha problemas com esse estado das coisas. Ele não era o único. - Ele pode decidir que os baldios são mais do que mereces, e ordenar que te enfiem numa nave para a Terra, para que o inimigo se encarregue de ti.

- Olha para mim a tremer! Além disso, essa seria a coisa mais supérflua que ele alguma vez fez.

- Supérflua? - Dorien franziu a testa. - Porque haveria de ser supérflua?

- Porque eu já tenciono ir lá abaixo de qualquer dos modos. - Mikail não a encarou enquanto falava. O que era um alívio, pois não havia forma, no universo conhecido e mais além, de a sua sensação de ter acabado de ser atingida por um meteorito não estar a transparecer no seu rosto. Ele parecia sentir o seu desconforto, no entanto, pois começou a falar mais depressa. - Parto no sábado. Numa nave. A confirmação chegou-me há algumas semanas. Previsto chegar na segunda…Maiken, não desmaies!

- Tu vais à Terra. – Os lábios dela moveram-se, mudamente, e o resto do que queria dizer não chegou a fazer-se ouvir. Aquilo de que era capaz resumia-se a olhar, com a boca a abrir e a fechar.

- Er. Sim. Tenta não entrar em pânico, está bem? - Mikail hesitou, e então, sem uma palavra, tomou-a nos braços, puxando-a contra si e enterrando-a de nariz no seu peito. Ele cheirava a álcool e a húmido e a nada que tivesse direito a ser apelativo ou reconfortante, e não era razoável que aquilo a fizesse sentir-se melhor, mas Dorien sentiu-se um pouco mais humana quando ele a sentou no sofá. - Queres um copo de água com adoçante? Um bacio onde vomitar? Qualquer coisa? Estava a planear contar-te…um destes dias. Mas depois de como reagiste da primeira vez que lá desci, achei por bem adiar. E não é como se tivesses motivo para te enervar. - Ele estava a tagarelar e ele sabia-o, a julgar pelo tom que usava. Dorien ainda não conseguira encontrar a sua voz. - Já não estamos em 2342, Maiken. Eles já não matam aqueles de nós que encontram. No máximo, obrigar-nos-ão a abortar a missão e regressar mais cedo, ou colocar-nos-ão num zoo. Não somos uma ameaça, e eles sabem-no. E se isto ainda é por causa do que aconteceu com a Lucy…estamos a falar de um acidente de há mais de vinte anos. Medidas foram tomadas para evitar situações semelhantes e…vamos, recompõe-te de uma vez!

Nada a teria feito mais feliz. Mas memórias tinham despertado, e elas estavam a estrangulá-la.


Última edição por Moggo em Qua Set 12, 2012 1:01 pm, editado 3 vez(es)
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Mensagem por Marfire Ter maio 29, 2012 6:07 pm

Já tenho net! Sim *assobia* eu estive sem Internet quase 6 meses. Não, não digas nada. O que importa é que estou de volta e que tudo quase ias levando um sermão por causa do CDR, até eu ter resolvido vir dar uma volta até ao Fanfictionnacional e me ter deparado com ele, com um lacinho e todo penteado a dizer que está a ser reescrito. De facto, gostava mais de lê-lo no blog, acho que facilitava a leitura. Então, não chegaste a escrever o final, vais escrevê-lo agora, após reescreveres? Eu continuo a adorar a história e este ano penso participar no NaNo, mesmo tendo descartado uma ideia por achar que é irrealizável em cinquenta mil palavras. Acho que não consigo descrever a vida real (REAL) e lidar com ela; fantasia é uma coisa mas "vida real" (ou seja lá como se chama) é totalmente diferente e nunca conseguiria manter um enredo de cinquenta mil palavras acerca de um mangaká que se depara com um bloqueio de escritor e ladidá mais uns mistérios. Isso é algo para quando eu estiver realmente nesse espírito e pronto a debruçar-me (com unhas, dentes e chocolate quente) sobre isso e tiver um pouco mais de experiência além de imaginação. Até lá, tenho algumas ideias para o NaNo. Stuff.
E tu, pensas participar?

P.S - Eu sou o Dudles, mas como poderás confirmar nos comentários à tua mais recente entrada no LJ, resolvi modificar o meu nickname. Hope you like it! ❤

P.S 2 - Agora estou à procura de um avatar xD


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Mensagem por Moggo Ter maio 29, 2012 6:08 pm

Yo, Marfire-ex-Dudles! Acabei de te dar resposta no LJ, há nem três segundos atrás!
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Mensagem por Marfire Ter maio 29, 2012 6:12 pm

Então eu respondo-te lá.
Que sintonia, hum?
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Mensagem por Moggo Ter maio 29, 2012 6:13 pm

Indeed.
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Mensagem por Fox* Qua maio 30, 2012 4:48 pm

Hahahaha Moggo, agora que vi o teu blog, sinto-me levemente ridícula quanto ao comentário do GoT! Ainda não vi a série (anda aqui no PC à espera que lhe peguem...) mas os livros estão absolutamente fantásticos! Mais uma vez, nunca (ok, nunca não, dificilmente) poderás criar, desenvolver e extinguir tantas personagens numa saga como o senhor Martin fez! Aplaudo-to se o fizeres :D

Ok, bom saber que tenho boa visão quanto aos desenhos! Bem a ver que combinam com o layot, mas não pensei que fosse essa a única razão! :)

PS: Deste cabo de mim na crítica ao Red Riding Hood! Acho que vi o filme todo outra vez nos dez minutos de leitura! E também gostei muito da tua abordagem ao Hunger Games!

Capítulo em si:

Não sei bem porquê, mas fiquei com uma ideia super divertida da Bertha! Mais de 200 anos, a agir como mãe da Emma, as caretas e o apregoar dos valores morais enquanto cozinha o jantar... Lembrou-me mesmo uma cena típica familiar, nem me lembrei que poderia ser passada numa altura em que as "pessoas" têm relógios em vez de corações!
E o facto da Emma casar tão "nova" (estou a basear-me nos padrões de "cá" e não de Craduma, isto é esquisito) para resolver os problemas que o louco do pai lhe deixou é bastante altruísta! Não estava à espera disso e gostei de ver um pingo de sentimentalismo entre todo aquele auto-controlo!

Amelie, moça, tu não podes ser real! 0000 como combinação? Numa mala que te custa partes do corpo?! Cada vez gosto mais desta personagem, principalmente por esconder esse segredo das "coisas más" por trás dos sorrisos que quer infligir à prima (vou gostar de a ver tentar fazer isso!).
E estou um pouco reticente quanto ao seu comportamento. Ela precisa de abrir o seu relógio para se acalmar? Isso soa-me muito estranho! Quase tão estranho quanto a Berta conhecer o pai da moça e nem nunca ter ouvido falar dela!
Preparativos para fazer a Emma esquecer essa ideia ridícula de não se casar por amor? Outra situação pela qual pago para ver sem o mínimo de problema, estou até bastante curiosa com o que a Amelie vai tentar fazer!
Esta personagem intriga-me! Sabemos muito pouco sobre ela, apenas que tem um gosto defeituoso para escolher peças de vestuário e um pior ainda para contar histórias de família...
Algo não soa bem!
(adorei a Bertha a falar das histórias que viveu! Estou a gostar desta espécie de "matriarca"!)

Casamento... Bem, nem me lembraria de casamentos por conveniência quando falamos de pessoas que vivem à base de rodas dentadas! E um casamento entre uma maníaca pelo controlo e um rapaz que há muito fugiu dele não pode gerar grande coisa! Pergunto-me que a Amelie pensaria disso, da futura sogra, Claritia, a controlar todos os passos desse casamento... Acho que as duas não se dariam nada bem, mas posso estar sempre a inventar!

Ok, primeiros humanos que encontro por aqui! Sejam bem aparecidos que já estava a fazer-me falta uma raça semelhante à minha (pergunto-me se não existem humanos escondidos na Terra que se fingem de Relógios...), principalmente se embarcarem numa aventura provavelmente suicida!
Gostei da Dorien (inicialmente pensei que fosse um rapaz) e gostei ainda mais da paciência que ela mantém pelo seu ex-recente-ainda? marido. Eu não conseguiria manter a calma à superfície quando me tinham deixado pendurada pela bebida e ressaca! Aplaudo-a por isso!
Estou à espera que ele aterre na Terra e traga mais novidades... Quem sabe se não assenta em Cráduma? :)
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Mensagem por Marfire Qua maio 30, 2012 5:20 pm

O.K, bem, eu conheço a história praticamente até onde foi escrita por isso não há grandes novidades no que toca a enredo e às personagens. A única coisa que venho aqui declarar é que o teu estilo de escrita, apesar de não se ter desenvolvido (o que seria praticamente impossível em tão pouco tempo), transformou-se. Sim, eu sei que a pressão contínua de escrever deteriora um pouco o sentido e a fluidez das palavras mas mesmo assim fizeste um ótimo trabalho. Aqui, nota-se que é uma revisão com mais calma e que as palavras estão mais "ordenadas" e os ritmos frásicos fluem melhor. Basicamente era só isto que eu tinha a dizer, visto que já anteriormente mencionei que gosto imenso do teu estilo de escrita. Acho que escreves frases mais compridas que o comum mas eu gosto disso, contanto que é uma opinião pessoal. Eu, pessoalmente, prefiro as frases mais compridas que os textos em que só aparecem frases minúsculas com cinco ou seis palavras, um sujeito e um adjetivo às três pancadas.
Por isso, keep going!

P.S (Omigwad, as minhas mensagens têm p.s a mais) - Continuo a gostar imenso da Dorien e do Lindsay. Acho que são grandes personagens.
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Mensagem por PandoraTheVampire Qua maio 30, 2012 6:06 pm

That awkward moment em que te dizem que provavelmente extinguirias a humanidade a não ser que ganhasses algo com ela existir...

Hum, bem, não era exactamente isso que queria dizer! O que quis dizer foi que não faria muito sentido mencionares algo para depois não mais voltares a tocar no assunto. Por isso disse que darias um destino muito mais terminal aos humanos se não pretendesses voltar a eles! :p

Quanto a este cap: A Emma continua a parecer-me demasiado controlada. A moça precisa de descontrair e sorrir um pouco! Quanto a esse casamento arranjado, tenho um certo pressentimento que ele não se vai realizar... e o noivo dela é muito estranho! Mas intrigou-me. Espero ver mais dele no futuro.

A Amelie é adorável! É tão despassarada e distraída que está constantemente a fazer-me sorrir. Fiquei muito curiosa quando ela disse que precisa do aparelho para controlar o seu relógio e não ficar zangada... ela está a esconder qualquer coisa... certo? E os planos dela para ajudar a sua prima no casamento vão ser sem sombra de dúvida fantásticos! Não tanto para a Emma... para ela deverão ser assombrosos... mas veremos o que saltará daí!

A Bertha é fantástica. Adorei as descrições dela do tempo dos criadores. Bastante explícitas, deixa que te diga. E o chá dela... muito bom... xD

Quanto aos nossos humanos, gostei da primeira impressão que tive deles. O casal (ex-casal?) que nos mostraste parece ter os seus altos e baixos. Quero ver o que acontecerá quando o Mikail vier à Terra... espero que não acabe num Zoo! Estou super curiosa com o resto, não paras de me surpreender.

Btw, não sei se já tinha comentado, mas adoro as tuas tiradas de humor levemente sarcásticas e a raspar no doido. O cesto de macacos desequilibrado à beira do precipício foi uma imagem fantástica que tão cedo não sairá da minha cabeça.

Awesome, please carry on! ^^

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Mensagem por Moggo Sex Jun 01, 2012 10:50 am

Bem, vamos lá ver se vos consigo responder a todos. (Três testamentos de comentário, pessoal? Eu não mereço :P)

Fox - Não te sintas mal. Nunca clicaste no link, não podias adivinhar. E estás a dar sermões ao padre quando dizes que os livros são fantásticos. (Mega fã, aqui deste lado.) Quanto à série, eu sou suspeita, pois comecei a vê-la primeiro e só li os cinco livros de rajada depois de terminar a primeira temporada, mas tens de pegar nela. É um pouco forte, mas se leste os livros, deduzo que não tens problemas com isso.

Uhm, já olhaste para os tijolos que ele escreve? É logisticamente impraticável que eu consiga desenvolver (e trucidar) o mesmo número de personagens, porque não vou nunca arranjar tempo e paciência para escrever coisas tão compridas. (Sou uma testamenteira, mas tenho os meus limites.) Mas também sou das tais que não tem medo de matar as suas criações, ou no mínimo fazê-las sofrer horrivelmente. Por isso embora não tenha banhadas de sangue programadas, algumas pessoas irão finar-se.

RE: Emma - Menos altruísmo e mais “o que me acontece não me importa de uma maneira ou de outra, e esta é uma solução simples”.
RE: Bertha - Ainda bem que gostaste dela. Temos aqui a personagem com a mente mais moderna do elenco, exactamente porque ela é tão velha. (Yep, estranho. Eu sei.) Isso liga-se àquilo que referiste sobre a história dos casamentos. A Bertha não aprova o Novo Velho Mundo e todas essas coisas, porque os padrões dela são mais ou menos os nossos.
RE: Amelie - Ela, a esconder um segredo? Nãoooooooooo…
RE: Dorien - Ela é um caso engraçado, sabes? Quando planeei a história, esta personagem não existia, e agora ela tem um enredo enorme só para si. Inicialmente a Intro era diferente, e eu tinha colocado o nome dela no fim, mas gostei tanto de como soava que dei uma pessoa ao nome. As aparições dela são esporádicas, mas o capítulo a seguir ao próximo deverá esclarecer melhor qual o papel da mulher nisto tudo.

Marfire - Obrigada. CDR não está perfeito, e suspeito que nunca irá estar por mais retoques que lhe dê, (não que eu tencione deixar isso deter-me, ou algo) mas é agradável ouvir que as horas perdidas a editar/reescrever não foram pelo cano abaixo. Porque, 4realz, tortura. Penso que demorei mais tempo a corrigir este monstro de texto do que a escrevê-lo. (Essa coisa do “escreve em quantidade e não te preocupes em editar” do NaNo tem muito que se lhe diga.) O meu estilo de escrita transformou-se, dizes? Bem, a qualidade daquilo que eu meto para fora tende a variar da disposição com que estou, da inspiração que tenho e da quantidade de vezes que debiquei o texto depois de o terminar. Portanto, penso que não se trata tanto de diferença de estilo como de “desta vez eu meti algum esforço nisto, %$#@!!!”.
P.S. - Não tenho qualquer problema com os teus P.S.

Pandora - Eu sei, eu entendi. Ignora-me quando me tornar a dar para armar em troll :P

Sobre a Emma, ela revela qualquer coisa parecida a emoção no capítulo seguinte, embora provavelmente não o género que se devesse esperar. Para perdas de controlo, terás de esperar , porque ainda estamos muito no início para começar a alterar caracterização previamente estabelecida. Não posso revelar nada sobre o casamento, por razões óbvias, mas muita tinta irá correr até chegarmos lá. Portanto, quem sabe. E iremos com toda a certeza ver mais do Zeph.

Sobre a Amelie...idem o que disse à Fox. O papel dela é um pouco maior que chegar, armar confusão e enervar a Emma, mas...explicações, só daqui a muitos, muitos capítulos. (É meio esquisito estar a dançar à volta de spoilers quando algumas das pessoas a ler isto sabem tudo o que se segue, mas neste ponto, qualquer spoiler que mande irá fazer muito pouco sentido, visto que certos conceitos ainda nem foram introduzidos.

Mikail e Dorien..."casal/ex-casal" é uma boa descrição, na verdade. Lábios selados sobre a ida à Terra, principalmente porque ainda não escrevi essa parte e ela se encontra sujeita a alterações. (É no que dá, começar a rever antes de acabar.)

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Mensagem por Marfire Sex Jun 01, 2012 1:29 pm

Não tens de agradecer, Moggo.
Diz-me uma coisa: qual é o programa que usas para criar capas e edição de imagens? Eu já fiz o download de mais de uma dúzia e nenhum me parece bom. Ou nem sequer abre, ou tem poucas ferramentas ou tem ferramentas a mais (no sentido de demasiados botões a encher a coisa).
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Mensagem por Moggo Sáb Jun 02, 2012 3:58 pm

O programa que eu uso é um chamado Paint Pro Shop X. É mais ou menos uma versão rasca do Photoshop. Não sei se é freeware, e demoras algum tempo a pescar como ele funciona, mas estou bastante satisfeita com ele.
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Mensagem por Marfire Sáb Jun 02, 2012 4:47 pm

Obrigado. Estou a tentar desenvolver uma aparente-tentativa-de-criar-algo-que-se-pareça-minimamente-com-uma-capa.
E já consegui começar a desenvolver o projeto para o NaNo em Agosto!
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Mensagem por Raaky* Sáb Jun 02, 2012 11:56 pm

Moggo!
Man, eu tenho de começar a controlar a minha preguicite aguda...

Portanto, so ontem ás tantas da manha acabei de ler o segundo capitulo (ao som de Lenny Kravitz live from Rock in Rio xD), e depois achei que o meu cérebro ja nao estava capaz de formar um comentário de jeito e resolvi ir dormir. E então aqui estou eu hoje ^^

Bem, a historia para mim nao e novidade, e já sabes o que penso das personagens. Adoro a Emma, conseguiste fazer da Amelie mais Mary Sue do que antes (xD), Homem das Luvas é awesome, e adorei teres dado nome de código á *spoiler alert* xD Oh, e já tinha saudades do Zeph e a sua mãe... Os humanos da Lua são fixes, e eu adoro a relação Dorien-Mikail-Clariane. E continuo com a minha teoria em relação á Lucy (a ultima coisa que li do manuscrito foi quando a Amelie torçe o tornozelo, por isso ainda não sei se a minha teoria está certa xD).
Gosto da nova Intro, de explicares como tudo aconteceu e tal, e de teres explicado onde fica Cráduma.

Quando á tua escrita, não há grandes diferenças, só está mais organizada, como seria de esperar. Não só isto é uma revisão, como o manuscrito foi escrito com o objectivo de ser acabado num mês (quase xD) e sem edições.

Bem, isto para dizer que vou acompanhar a edição desta tua grande obra, e quero ver-lhe o fim ^^
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